Conselho aprova resolução sobre aborto legal para crianças e adolescentes
Documento regulamenta atendimento humanizado a vítimas com direito ao procedimento, e traz orientações para casos em que haja divergência com os responsáveis
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, aprovou nesta segunda-feira uma resolução que regulamenta o aborto legal em crianças e adolescentes. Na assembleia, realizada de forma extraordinária, os 15 representantes da sociedade civil votaram a favor da medida, enquanto os 13 integrantes do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram contrários ao texto.
Na redes sociais, a aprovação da resolução recebeu críticas de parlamentares bolsonaristas, que já vinham se mobilizando contra a deliberação do conselho.
O documento tem como objetivo garantir atendimento humanizado às vítimas com direito ao procedimento, conforme previsto pela legislação brasileira, ou seja, em casos de gravidez decorrente de violência sexual, risco de vida à gestante e quando o feto apresenta anencefalia.
A resolução, obtida pelo Globo, destaca que, identificada a situação de aborto legal e manifestada a vontade de interromper a gravidez, a criança e o adolescente deverão ser encaminhados aos serviços de saúde pelo órgão do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) para realizar o aborto.
“É um direito humano de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, estando diretamente relacionado à proteção de seus direitos à saúde, à vida e à integridade física e psicológica”, diz a minuta.
O documento também propõe diretrizes para evitar a revitimização de crianças e adolescentes, garantindo que a “manifestação de vontade” da gestante seja priorizada, mesmo nos casos de divergência dos pais. Caso a presença dos responsáveis represente risco de "danos físicos, mentais ou sociais", e se ela tiver capacidade para tomar a decisão, o profissional deve garantir o processo de escuta e que quaisquer outros "tratamentos, devidamente consentidos, sejam realizados sem impedimento".
No caso em que os responsáveis estiverem presentes e divergirem, também devem ser acolhidos, mas priorizando o desejo manifestado pela menor de idade. Se a divergência persistir, a recomendação é acionar a Defensoria Pública ou o Ministério Público.
O governo Lula entendeu que a medida, com a redação atual, deveria ser regulamentada por lei aprovada pelo Congresso. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), comandando pela ministra Macaé Evaristo, os representantes da gestão federal questionaram os termos da resolução durante a assembleia e solicitaram um pedido de vista para análise mais detalhada da proposta.
A pasta requisitou um parecer da consultoria jurídica do ministério, que "indicou, entre outros aspectos, que a minuta de resolução apresentava definições que só poderiam ser dispostas em leis – a serem aprovadas pelo Congresso Nacional, indicando a necessidade de aperfeiçoamento e revisão de texto, garantindo maior alinhamento ao arcabouço legal brasileiro". Apesar das solicitações, o pedido de vista apresentado foi rejeitado pelo plenário do Conanda e o texto foi aprovado.
Em nota, o Nem Presa Nem Morta, campanha que defende a descriminalização do aborto no Brasil, e o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, ONG que desenvolve desde 1981 um trabalho com foco na atenção primária à saúde das mulheres, afirmaram que "a atitude do Governo frente à aprovação da resolução foi constrangedora".
"Durante as discussões, tanto conselheiros da sociedade civil quanto do Governo Federal tiveram a oportunidade de apresentar propostas de alteração, supressão e acréscimo. Em nenhum momento foram trazidas as preocupações sobre supostas ilegalidades e invasões de competências pela resolução. A postura do Governo Federal foi pouco dialógica, focada na presença de conselheiros/as que nunca estiveram em qualquer outra reunião ou assembleia do Conanda, evidenciando o objetivo de somar votos contrários à resolução, sem a real intenção de contribuir para o aprimoramento do texto", informou a nota.
Já a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) afirmou que "diversos conselheiros apontaram irregularidades no processo, cuja condução violou o regimento interno do Conanda". "Membros do Conselho ainda ressaltaram que a resolução extrapolou as competências normativas do órgão, estabelecendo obrigações para Estados e municípios", disse a associação.
Reações na política
Após a aprovação da resolução, parlamentares favoráveis e contrários à regulamentação se manifestaram nas redes sociais. A deputada federal Carla Zambelli (PL) defendeu que o texto é "perverso, antidemocrático e anticientífico". Já a deputada Sâmia Bomfim (PSOL) afirmou que a aprovação é "um passo importante para proteger crianças e adolescentes, assegurando seus direitos".
O deputado federal Carlos Jordy (PL) informou que a oposição vai protocolar um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para sustar a resolução, que classificou como "absurdo do desgoverno Lula", apesar da oposição do governo à aprovação da medida.
Na última terça-feira, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) havia anunciado que iria protocolar uma indicação para que a ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, rejeite a resolução, ameaçando entrar com um mandado de segurança caso ela seja aprovada. Já a deputada Julia Zanatta (PL-SC) apresentou um projeto para alterar a lei que cria o Conanda, proibindo-o de discutir o tema do aborto em crianças e adolescentes. O deputado Gustavo Gayer (PL-GO), por sua vez, apresentou moção de repúdio contra o conselho. Os três parlamentares estão entre os principais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Congresso.
Agressores são familiares ou conhecidos
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 apontam que o Brasil registrou 83.988 estupros, uma média de um a cada seis minutos. A maioria das vítimas são meninas menores de 13 anos, sendo que 84,7% dos agressores são familiares ou conhecidos.
Em 2021, de acordo com o DataSUS, 17.456 bebês nasceram de meninas com menos de 14 anos — em 2023, o número foi de 13.909. Além da violência sexual, as consequências de uma gravidez precoce são graves. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), complicações na gestação e no parto são a segunda principal causa de morte entre meninas de 15 a 19 anos.
A votação da resolução ocorre após casos recentes com ampla repercussão nacional. Em 2023, uma criança de 10 anos, estuprada pelo tio, precisou entrar escondida em um hospital para realizar o aborto legal devido ao assédio de grupos contrários. Já em julho deste ano, uma menina de 13 anos foi impedida pela Justiça de interromper a gravidez depois que o pai fez um acordo com o estuprador.
O texto também especifica a necessidade de uma escuta especializada das vítimas de violência sexual de forma a não culpabilizá-la ou criminalizá-la, "garantindo-se uma abordagem respeitosa e sensível à proteção de seus direitos, com o objetivo de proporcionar um ambiente seguro em que a criança ou adolescente possa se expressar livremente".