Filósofo espanhol Paul B. Preciado faz duras críticas a "Emilia Pérez"
Musical francês é o grande adversário de 'Ainda estou aqui' na disputa pelo Oscar de melhor filme internacional
Grande vencedor do Globo de Ouro, com quatro estatuetas, incluindo melhor filme comédia/musical e melhor filme em língua não inglesa, "Emilia Pérez" é um dos destaques da temporada de premiação e promete vir forte para a disputa do Oscar.
Considerado o maior adversário de " Ainda estou aqui" na disputa pelo Oscar de melhor filme internacional, o musical francês dirigido por Jacques Audiard vem recebendo críticas positivas desde sua estreia no Festival de Cannes, em maio de 2024. O longa, no entanto, também desperta polêmicas, especialmente por retratar uma realidade mexicana a partir da visão de um cineasta francês, com atrizes radicadas nos Estados Unidos ou na Europa.
Em artigo publicado no jornal El País, o filósofo espanhol Paul B. Preciado, um dos principais pensadores contemporâneos sobre políticas do corpo, gênero e sexualidade, fez duras críticas ao longa.
"Enquanto alguns já ilustram as estatuetas do Oscar de 'Emilia Pérez', último filme do diretor francês Jacques Audiard, eu vim para queimar os Oscars e salvar Emilia, todas as Emilias do México, da violência da indústria cinematográfica", anuncia Preciado logo no início do texto.
E ele continua: "O filme de Audiard conta, segundo sua própria descrição, a história de Manitas, um maldito traficante mexicano que muda de gênero e se transforma em Emilia para tentar escapar de seu destino. Embora seja apresentada como o resumo do cinema moderno repleto de números musicais e invenções visuais e narrativas, 'Emilia Pérez' é, quando se conhece a história das representações de pessoas trans, um pergaminho de ruínas semióticas coloniais e binárias tão previsíveis quanto anacrônicas. Ao curvar-se às exigências de um cânone narrativo hegemónico que tem sido contestado por grupos e pelas próprias pessoas trans e racializadas, 'Emilia Pérez' perpetua uma visão psicopatológica da transição de género baseada em quatro premissas: criminalização, exotização etnográfica, representação médica-cirúrgica da transição de género e assassinato. E este último não é um spoiler. Todos os filmes normativos sobre pessoas trans acabam matando o protagonista."
No texto, Preciado, que no ano passado lançou o documentário LGBTQIA+ "Orlando, minha biografia política", detalha cada uma das premissas.
"A história de 'Emilia Pérez' faz parte da genealogia iniciada por Hitchcock em 'Psicose' (1960) e continuada posteriormente por Brian De Palma em 'Vestido para matar' (1980) e Jonathan Demme em 'O silêncio dos inocentes' (1991), em que, invertendo os papéis de o culpado e a vítima, a mulher trans é representada como uma assassina, uma psicopata frustrada (e enfatizo aqui o gênero masculino já que todos esses filmes nos apresentam primeiro a mulher trans como 'um homem') que busca vingança. A diferença é que esse assassino não quer mais vingança, mas sim redenção: em vez de matar para se tornar mulher, o assassino do filme de Audiard se tornará mulher para tentar parar de matar", explica o autor.
"O filme nos apresenta a pessoa trans como necessariamente estrangeira e estranha, como o radicalmente Outro, aquele que não pertence à nossa cultura nem fala a nossa língua. O diretor francês Audiard leva esse processo de alteridade ao limite ao transferir a história para o México e tornar o idioma do filme o espanhol mexicano — apesar de o filme ter sido inteiramente rodado nos arredores de Paris, com atrizes que não sabem ou não falam espanhol com sotaque mexicano. A extraordinária Karla Sofía Gascón é (apesar de ter passado anos no México) espanhola, Zoe Saldaña nasceu e cresceu no Queens, Nova York, e Selena Gómez é tão norte-americana que não consegue pronunciar a palavra 'pinche' sem ficar presa na a boca dela", continua Preciado.
O texto segue: "Carregado de racismo e transfobia, de exotismo antilatino e de binarismo melodramático, 'Emilia Pérez' reforça assim a narrativa colonial e patologizante não só da transição de género, mas também da cultura mexicana."