REDES SOCIAIS

O que não pode ser dito nas redes sociais? Veja diferenças entre as legislações no Brasil e nos EUA

Para especialistas mudanças na moderação da Meta devem ampliar ações judiciais porque usuários terão de recorrer mais aos tribunais para remover conteúdo

Celular - Tânia Rêgo/Agência Brasil

A decisão da Meta que flexibiliza regras sobre conteúdo de ódio nas redes sociais da empresa deve aumentar ações na Justiça contra a empresa, avaliam especialistas ouvidos pelo GLOBO. A empresa, no entanto, continua protegida de responsabilização no Brasil pelo conteúdo que circula no Instagram, Facebook e Threads, em razão do Marco Civil da Internet.

No entanto, os analistas lembram ainda que as regras sobre liberdade de expressão aqui são diferentes das americanas.

Na terça-feira, a Meta flexibilizou as regras que determinam que tipo de conteúdo é proibido nas plataformas e, portanto, está sujeito a ser removido. O CEO da empresa, Mark Zuckerberg, ao anunciar o fim do programa de checagem independente e o aumento do conteúdo político nas redes, disse ainda que eliminaria “um monte de restrições” sobre tópicos como gênero e imigração.

 

As novas diretrizes permitem, por exemplo, que usuários associem doenças mentais a gênero ou orientação sexual, em contextos de debates religiosos ou políticos. Também flexibilizam restrições a discursos que defendem a limitação de gêneros em determinadas profissões.

O texto em português acrescenta que será possível usar termos como “esquisito” para referências a pessoas LGBTQIAPN+.

Igual a crime de racismo
Apesar das diretrizes permissivas da empresa, a flexibilização não faz com que conteúdo discriminatório fique imune à lei brasileira, lembra a advogada especialista em Direito Digital Patrícia Peck. Ela afirma que a jurisprudência nacional evoluiu em agosto passado, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que ofensas contra pessoas LGBTQIA+ podem ser enquadradas como racismo ou injúria racial.

— Assim, as mudanças nas diretrizes da Meta podem ser enquadradas na nova concepção doutrinária do crime de injúria racial, sobretudo após a lei 14.532, de janeiro de 2023, que equiparou o crime de injúria racial ao de racismo — afirma a advogada, que acrescenta que esse tipo de conteúdo ainda poderá ser enquadrado como crime de honra.

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A especialista avalia que a mudança na regra, com o fim da exclusão de postagens discriminatórias, provoque um aumento de ações judiciais pedindo remoção de conteúdo. De acordo com o Marco Civil da Internet, as plataformas só podem ser responsabilizadas por conteúdo publicado por terceiros quando não cumprirem ordem judicial para remover ou tornar indisponível o material considerado ilegal.

Ela argumenta que as novas diretrizes, ao permitirem disseminação de conteúdo discriminatório, violam o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, entre outros tratados internacionais.

'As pessoas vão responder'
Álvaro Jorge, professor da FGV Direito Rio, lembra que, embora o Marco Civil proteja as plataformas, os usuários não estão isentos de respeitar a legislação brasileira:

— As pessoas vão responder por isso (eventual crime). É diferente da responsabilização da plataforma — ressalta o advogado, que também espera mais ações na Justiça contra a Meta. — A legislação brasileira independe das regras da plataforma. O que vai acontecer é que pessoas que se sentirem atingidas terão de recorrer ao Poder Judiciário para suspender conteúdo.

Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional na FGV Direito SP, ressalta que a perspectiva americana sobre liberdade de expressão é amplamente liberal tanto na possibilidade de discurso, quanto na desresponsabilização do meio utilizado para o discurso. O entendimento legal vai de encontro ao arcabouço que foi consolidado no Brasil.

— O Brasil veda a censura prévia, mas insere a possibilidade de criminalização por determinadas condutas discursivas. São escalas diferentes, em que alguns discursos que nos Estados Unidos são liberados, no Brasil são proibidos — diz Vieira.

‘Instituições vão reagir’
Para Jorge, da FGV, as mudanças na Meta devem “reenergizar” a discussão sobre regulamentação das redes sociais. O anúncio de Zuckerberg, diz, “deixou claro” que o modelo de autorregulação é insuficiente, pois as empresas podem mudar as regras “do dia para a noite”.

— A ação da Meta coloca as instituições brasileiras na berlinda. E essas instituições tendem a reagir. Acredito que será um combustível par aceleração do julgamento no Supremo (sobre responsabilização das redes por conteúdo publicado) — diz o professor de direito digital da Universidade Mackenzie Diogo Rais, que também espera uma “proliferação da judicialização contras as plataformas”

Para Rais, apesar de argumentar que a liberdade de expressão era o motivador das mudanças, Zuckerberg deixou claro em seu discurso que está transformando as aplicações de suas redes “em um instrumento político”:

— É possível reconhecer essa flexibilização as pautas do espectro ideológico da extrema direita. Ele primeiro decide que esse tipo de conteúdo não é um problema e depois diz que irá voltar a incentivar a circulação de postagens políticas de uma forma geral. A tomada de decisão nessa ordem indica uma estratégia.

Texto em português confirma mudanças
Nesta quinta-feira, a Meta publicou em português a atualização dos Padrões de Comunidade. As atualizações incluem a possibilidade de uso de termos como “esquisito”, em discursos políticos e religiosos sobre transgenerismo e homossexualidade.

A empresa também passou a permitir postagens que defendam "limitações baseadas em gênero para empregos militares, policiais e de ensino”. Outra mudança suprime trecho que impedia a desumanização de mulheres com base em comparações com objetos inanimados e estados não humanos.

Ao anunciar as alterações e marcar sua guiada ao trumpismo, Mark Zuckerberg defendeu que a Meta iria “às raízes” da empresa “em torno da liberdade de expressão”. O executivo também indicou que iria se aliar a Trump para “restaurar” a liberdade em outras partes do mundo.

Reação no Congresso
Em documento enviado ao relator das Nações Unidas para questões de minorias, Nicolas Levrat, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) pediu que fosse aberta investigação sobre as mudanças e os danos que poderiam causar à comunidade LGBTQIAPN+.

No X, a deputada federal Duda Salabert (PDT-MG) afirmou que entraria com ação judicial contra a empresa. A parlamentar enviou ofíco à Meta solicitando informações sobre as mudanças. Também oficiou o ministro do STF, Alexandre de Moraes, para uma reunião sobre o caso.

Ontem, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) se reuniu com representantes do Ministério Público Federal (MPF) após protocolar uma representação contra as mudanças. A organização espera que o MPF entre com uma ação civil pública contra a Meta e, entre outros pontos, pede indenização a título de reparação para a comunidade LGBTQIA+.

Bruna Benevides, presidenta da Antra, espera também que o caso impulsione avanços sobre regulamentação das redes sociais:

— A sociedade deve se mobilizar e o estado brasileiro deve dar respostas contundentes no sentido de proteger a comunidade (LGBTQIA +). O primeiro ponto da discussão é a regulamentação.

O que dizem as novas regras
O trecho em português das diretrizes da Meta que trata das associações de pessoas LGBTQIAPN+ com transtornos mentais afirma que a empresa permite "alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual, considerando discursos políticos e religiosos sobre transgenerismo e homossexualidade, bem como o uso comum e não literal de termos como “esquisito”'.

A empresa também afirma que será possível publicar postagens que defendam "limitações baseadas em gênero para empregos militares, policiais e de ensino. Também permitimos conteúdo similar relacionado à orientação sexual, desde que fundamentado em crenças religiosas".

O Globo questionou a empresa sobre quando todas as mudanças anunciadas por Mark Zuckerberg serão aplicadas no Brasil, mas não obteve resposta até o momento. O Ministério Público Federal (MPF) deu à Meta um prazo de 30 dias para apresentar esclarecimentos sobre as alterações e as possíveis implicações legais no país.

Além das novas diretrizes para discurso de ódio e do fim dos checadores, Zuckerberg afirmou que a Meta vai reintroduzir conteúdo político nas redes e flexibilizar a exclusão de postagens que tenham violações consideradas menos graves.

Confira as principais mudanças

1. Menção à violência física foi retirada: a Meta retirou integralmente trecho que citava que o discurso de ódio on-line tinha efeitos no meio físico.

- Documento anterior: "Acreditamos que as pessoas se comunicam e se conectam mais livremente quando não se sentem atacadas pelo que são. É por isso que não permitimos discursos de ódio no Facebook. Isso cria um ambiente de intimidação e exclusão que, em alguns casos, pode promover a violência no meio físico”.

- Versão atual: "Acreditamos que as pessoas se comunicam e se conectam mais livremente quando não se sentem atacadas pelo que são. É por isso que não permitimos conduta de ódio no Facebook, no Instagram ou no Threads."

2. Debate sobre exclusão baseada em sexo e gênero passa a valer: o documento adiciona menção de que é possível debater restrição de acesso a espaços, como banheiros, em razão de gênero ou sexo.
- Versão atual (trecho incluído): "Por vezes, as pessoas utilizam uma linguagem exclusiva em função do sexo ou do género quando discutem o acesso a espaços frequentemente limitados pelo sexo ou pelo género, como o acesso a casas de banho, a escolas específicas, a funções militares, de aplicação da lei ou de ensino específicas, e a grupos de saúde ou de apoio. Outras vezes, incentivam à exclusão ou utilizam linguagem ofensiva em contexto de discussão de assuntos políticos ou religiosos, como quando se discutem os direitos das pessoas transgênero, a imigração ou a homossexualidade. Por fim, às vezes, as pessoas também insultam um gênero no contexto do final de uma relação amorosa. As nossas políticas foram concebidas para dar espaço a esses tipos de discurso".

3. Defesa de limitações baseada em gênero será permitida: regras atuais permitem conteúdo que trate de distinções profissionais baseadas em gênero.
- Versão atual (trecho incluído): "Permitimos conteúdo que defenda limitações baseadas em gênero para empregos militares, policiais e de ensino. Também permitimos conteúdo similar relacionado à orientação sexual, desde que fundamentado em crenças religiosas."

4. Permissão para associação entre doença mental e gênero e orientação sexual: documento vai permitir que pessoas LGBTQIA+ sejam classificadas como doentes considerando discursos políticos e religiosos.
- Versão atual (trecho incluído): "Permitimos alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual, considerando discursos políticos e religiosos sobre transgenerismo e homossexualidade, bem como o uso comum e não literal de termos como “esquisito”.

5. Proibição de associação a objetos foi modificada: a Meta eliminou trecho que proibia a desumanização de mulheres com base em comparações com objetos inanimados e estados não humanos. Trecho que proíbe associação de "pessoas negras com equipamentos agrícolas" foi incluído no novo documento, mas em outro trecho.
- Documento anterior (trecho excluído): Não publique […]: Discurso degradante na forma de comparações ou generalizações sobre: […] Certos objetos inanimados e estados não humanos: * Objetos específicos (mulheres como objetos ou bens domésticos ou objetos em geral; pessoas negras como equipamentos agrícolas; pessoas transgênero ou não-binárias como “isso”) * Fezes (incluindo, entre outros: merda e bosta) * Impurezas (incluindo, entre outros: sujeira, fuligem ou "[característica protegida ou característica semiprotegida] com má higiene"). * Bactérias, vírus ou micróbios * Doença (incluindo, entre outros: câncer e doenças sexualmente transmissíveis) * Sub- humanidade (incluindo, entre outros: selvagens, demônios, monstros e primitivos)

6. Negação da existência foi excluída: a Meta retirou trecho que proibia declarações negando a existência de pessoas ou grupos protegidos.
- Documento anterior (trecho excluído): "Declarações negando a existência (incluindo, entre outros: '[características protegidas ou quase protegidas] não existem', 'não existem [características protegidas ou quase protegidas]' ou '[características protegidas ou quase protegidas] não devem existir')."