Após 30 anos afastadas, sertanejas Xicotinho & Salto Alto retornam à cena com shows
Atrizes e cantoras Stella Miranda e Katia Bronstein trazem de volta dupla bem-humorada com figurino de Gringo Cardia e repertório sem sofrência
Na história que as próprias personagens contam, Xicotinho nasceu em Itapira, interior de São Paulo, e só queria duas coisas da vida: cantar a alma caipira e tornar-se uma super-heroína do sertão.
Numa casa de shows de beira de estrada, ela conheceu a crooner Salto Alto, e as duas formaram uma dupla sertaneja, empresariada pelo cabeleireiro e estilista Gringo Cardia.
A coisa deu tão certo que Gringo conseguiu levá-las até Nashville, meca da música country.
Mas aí ele foi preso por sonegação de impostos e os três acabaram em Assunção, no Paraguai, onde Xicotinho & Salto Alto fizeram uma residência artística forçada pelos últimos 30 anos.
Na real: no começo dos anos 1990, as atrizes e cantoras Stella Miranda e Katia Bronstein despontaram na cena musical como Xicotinho & Salto Alto, bem-humorada dupla que conseguiu uma entrada no mundo pop-sertanejo (onde, então, simplesmente não havia duplas femininas), vestidas como verdadeiras drags country e cantando um repertório que misturava clássicos da música muito popular brasileira (como “Você é doida demais”, de Lindomar Castilho) a músicas feitas para elas por nomes como Marisa Monte (“Mais uma vez”, que Marisa gravaria ela mesma, em 2008, no álbum “Infinito ao meu redor”).
Repertório turbinado
Estrelas de feiras agropecuárias e de programas de auditório, Xicotinho & Salto Alto tiveram carreira meteórica: gravaram um LP em 1992 e logo depois acabaram.
Mas agora estão de volta do Paraguai ficcional para os seus primeiros shows em mais de três décadas: dias 29 e 30, elas se apresentam no Manouche, no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio de Janeiro, trazendo um espetáculo no qual recuperam o repertório do LP e incluem seis canções.
Entre elas, “Dublê de vaqueiro”, uma das mais recentes músicas do astro pernambucano João Gomes, um dos queridinhos de Stella — uma caipira de raiz, por mais incrível que possa parecer.
"Nasci na cidade de São Paulo, mas minha família tem fazenda no interior. Tanto que eu tenho esse chicotinho, que é verdadeiro" afirma ela, que, como se a palavra não bastasse, exibiu o objeto na sessão de fotos.
"Um dia, eu estava voltando para o Rio de um sítio em Cachoeiras de Macacu, crianças no carro, estrada entupida, e resolvi entrar numa cidadezinha em que estava tendo uma feira agropecuária gigantesca. Tinha um show do Milionário e José Rico, que eu já amava, mas nunca tinha assistido ao vivo, e eu fiquei bestificada. Na hora, falei: “Quero uma dupla dessas para mim!”"
Do chicote do avô de Stella veio o nome para o seu personagem. E seu parceiro em musicais, o ator, pianista e compositor Tim Rescala logo entrou na jogada.
Paulista do interior, de Tatuí, Vera Holtz foi a primeira Salto Alto, mas só participou dos ensaios iniciais da dupla.
Por intermédio de Tim, que a conhecia de musicais, veio então Katia Bronstein, uma carioca apaixonada por contracantos que, “apesar das vozes de cores muito diferentes”, acabou se entrosando muito bem no canto com Stella Miranda.
"Xicotinho e Salto Alto é um avatar sustentado pelas nossas vozes. Se a gente não cantasse legal juntas, não teria acontecido nada" assegura Stella, que faz a primeira voz da dupla.
Gringo Cardia (o do mundo real) criou o visual exagerado mas brejeiro de Xicotinho & Salto Alto, e as duas foram atrás dos amigos para montar um repertório.
Conseguiram canções inéditas de Marisa Monte, Herbert Vianna (“Corno feliz”), de integrantes dos Titãs (“Baby, volta pra mim”, “Fazendinha”) e de Tim Rescala (“Xicotinho e Salto Alto” e “Na moita”).
Com elas, mais o hit de Lindomar Castilho e duas canções do filme “Nashville”, de Robert Altman, que Stella verteu para o português, a dupla começou a sua caminhada de sucesso.
"Com grandões"
Xicotinho & Salto Alto passaram por casas descoladas da Zona Sul do Rio, mas estrearam mesmo em Magé, numa feira de gado.
Com uma banda da qual faziam parte Tim e o saudoso baterista Oscar Bolão, elas peregrinaram por programas de TV (como o “Domingão do Faustão”, da Globo, e até o especial de Leandro & Leonardo), por uma feira de cavalos de raça, pelo festival Country in Rio e por incontáveis feiras do interior.
Abriram shows de Gilberto Gil, mas também de todas as duplas sertanejas de sucesso (masculinas, é claro) que se poderia imaginar.
"A gente fazia show com os grandões, mas eles não achavam a menor graça. Por sermos mulheres, por fazermos sucesso na seara deles... e porque a gente cantava música sertaneja, mas acrescentando um humor ao qual eles não estavam acostumados" recorda-se Stella.
"Quanto ao público, havia um estranhamento inicial, mas ele acabava gostando. As pessoas não entendiam direito se era para rir ou não, mas acho que esse era o nosso charme. Tinha as nossas figuras, obviamente, que eram muito estranhas para eles, mas a gente trazia uma coisa nova com a linguagem deles"
Katia Bronstein assegura que Xicotinho & Salto Alto nunca foi de chacota.
"Temos humor, mas não é uma paródia, a gente canta bem" diz.
"A gente estava reverenciando e honrando os sertanejos, mas sendo nós mesmas, trazendo as nossas histórias de referências e brincadeiras".
O sucesso da dupla atraiu a atenção da RGE, gravadora de muitos sertanejos, onde elas fizeram seu LP com os músicos craques do estilo, em São Paulo (“gravamos ao vivo, as duas juntas, sem auto-tune!”, orgulha-se Katia).
A capa, porém, ficou a cargo de Gingo Cardia, que depois as levou a Nashville para gravar o clipe de “Doida demais”, com figurinos produzidos em Nova York por Patricia Field (futura “Sex and the city”).
Show com Charles Gavin e direção de Gringo Cardia
O grande momento de glória de Xicotinho & Salto Alto foi quando as duas encararam um público de 20 mil pessoas na Festa do Peão de Barretos. Mas, ali, Katia Bronstein começava a entrar em outra.
"Eu era muito jovem, fazia um monte de trabalhos, campanha publicitária do Unibanco... aí fui fazer umas viagens, comecei a namorar o João (Barone, baterista dos Paralamas do Sucesso, com quem se apresentava no show “Básico Instinto”, de Fausto Fawcett) e a coisa deu uma diluída" resume ela.
Já Stella Miranda diz que, por sua vontade, a dupla não teria acabado ali.
"Sendo bem sincera, eu amava aquilo... a gente falava com o povo! Mas a Katia estava com outros planos, cada um tem a sua viagem, e quando eu percebi que ela estava voando para outros lugares, resolvi parar, desmarcamos vários shows. Eu não ia fazer o Xicotinho & Salto Alto com outra pessoa" conta ela que, no entanto, chegou a tentar remontar a dupla com uma outra cantora, mas não deu certo.
O tempo passou e cada uma foi para um lado. Stella seguiu carreira, eventualmente com muito sucesso, como Carmen Miranda no musical “South American Way” e a Dona Álvara do sitcom “Toma lá dá cá”, da TV Globo.
Assim como Katia B, a cantora carioca também iniciou uma trajetória de trabalhos autorais, no pop eletrônico.
Enquanto isso, a novela “A Favorita” (2008-2009) punha em cena, na ficção, a dupla sertaneja feminina Espoleta (Patrícia Pillar) e Faísca (Cláudia Raia), e o feminejo tomava de assalto o país com artistas como Marília Mendonça e Maiara & Maraisa, em canções que não raro resvalavam para a mais pura sofrência.
"A gente respeita quem faz, mas não tem sofrência no Xicotinho e Salto Alto!" garante Stella Miranda.
Há uns dois anos, Katia Bronstein voltou a ouvir o disco de Xicotinho & Salto Alto... e se encantou.
Ela então procurou Stella e a convenceu a fazer alguns ensaios da dupla, para lembrar os velhos tempos, e viu que a mágica ainda estava ali.
Reforço luxuoso
Algum tempo depois, por acaso, Katia encontrou o baixista e produtor Kassin, que disse estar ouvindo muito o mesmo disco.
Sabendo dos ensaios, ele e Gringo Cardia deram a sugestão de que elas marcassem alguns shows no Manouche. E assim, de repente, Xicotinho & Salto Alto estavam de volta à cena.
"Aí pegou fogo, a gente foi se emocionando e se arrepiando" conta Katia, que pela primeira vez no trabalho com a dupla vai tocar violão de cordas de aço.
Kassin logo aderiu à banda e sugeriu como baterista o ex-Titãs e pesquisador de MPB Charles Gavin. Gavin, por sua vez, sugeriu o mestre da guitarra slide Rick Ferreira, velho escudeiro de Raul Seixas.
Por fim, Rick trouxe o tecladista Fabrizio Iorio, seu parceiro. Todos eles estarão no palco do Manouche com Xicotinho & Salto Alto em figurinos criados por uma drag queen indicada por... Gringo Cardia, o diretor de arte do show.
"É o mesmo Xicotinho e Salto Alto, mas com um outro significado, um sabor diferente, maduro" define Stella Miranda.
Além das músicas do disco de 1992 e do hit de João Gomes, o show terá versões de canções de Tom Waits (uma delas feita pelo poeta Ferreira Gullar para um velho show de Stella dedicado à obra do americano), de Almir Sater e o “Trem das 7” de Raul Seixas — todas com arranjos vocais de Katia Bronstein.
É uma volta ainda sem grandes planos, na leveza e na euforia dos encontros que ressuscitaram Xicotinho & Salto Alto.
"A gente está vindo do Paraguai, tem uma coisa legal aí!" provoca Stella.