"O grande impacto da vacina na dengue deve acontecer em 2026", diz diretor do Instituto Butantan
Esper Kallás falou ao Globo sobre quando o Brasil deverá aplicar as primeiras doses e de outros projetos em estágio avançado
O médico infectologista e titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Esper Kallas consegue, neste 2025, vislumbrar a linha de chegada de diversos projetos caros ao Instituto Butantan, em São Paulo, onde é diretor.
O centro de referência de imunobiológicos, ligado ao governo paulista, está já discutindo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o registro da vacina dose única para a dengue, o desenho de um estudo para gripe aviária e mais a aprovação de uma vacina para chikungunya. São etapas fundamentais para que, a depender da decisão da agência, o país possa passar a considerar o uso dessas vacinas para debelar o efeito de doenças em disseminação no país.
Há dois anos no cargo, o especialista falou ao Globo sobre a contribuição do imunizante para o controle da dengue (o que só deve acontecer em 2026), os estudos clínicos para adultos acima de 60 anos e de como o Brasil pode se comportar diante de uma disseminação do vírus da gripe aviária.
Abaixo, trechos da entrevista:
Há indicativos iniciais de que esse ano terá alta prevalência de dengue. Como o instituto poderá colaborar com o controle da doença?
A principal coisa é admitir que nós estamos, de fato, entrando no ano de 2025 com dados parecidos com os do começo de 2024, considerando informações da Secretaria de Saúde do estado de São Paulo. Outra coisa é a documentação de que o vírus sorotipo 3 está circulando. O Butantan tem a contribuir, nesse momento, ajudando a ampliar a informação sobre os temas relacionados à prevenção da doença e de combate ao vetor. Dá para a gente trazer a vacina esse ano ainda para ter um impacto em saúde pública? Não. A gente está trabalhando no desenvolvimento da vacina da dengue há muito tempo e concluímos toda a parte de processos de produção já para construir o pacote (de documentação) que foi para a Anvisa. E a agência é sensível para que isso seja avaliado como prioridade. A gente continua fazendo os nossos processos, testando a nossa capacidade, desafiando os nossos sistemas e melhorando etapas para tentar aumentar a produção.
Já há doses sendo produzidas sob risco?
Temos alguma produção sob risco sim. A produção se chama assim, sob risco, porque quer dizer que a Anvisa pode sugerir que algum ponto seja feito diferente, melhorado, na produção. A depender dessa diferença, pode-se perder o que foi feito, por exemplo. A gente vai fazendo um pouco, avaliando os processos, mas de maneira que não mude o dossiê (encaminhado para agência), o prazo que eles dão é de três meses, o que será completado em 16 de março, mas estamos disponíveis para receber qualquer exigência, pendência ou melhoria.
Mantém-se a previsão de produzir um milhão de doses esse ano e 100 milhões entre 2025 e 2026?
Sim. A vacinação contra a dengue traz desafios muito grandes. Veja só, nós temos dados já de 3,7 anos de acompanhamento de vacinados mostrando que a proteção persiste. Então, até 3,7 anos, em média, posso dizer que é muito provável que não seja necessário aplicar outra dose. A gente está terminando a análise de 5 anos. Estamos confiantes. Então vamos dizer que eu preciso vacinar a população do Brasil hoje. Qual é a faixa etária que a vacina foi testada? De 2 a 60 anos incompletos. Isso dá, em uma estimativa ainda grosseira, 130 milhões de pessoas de uma vez. Portanto, seguramente teremos um pico de produção e depois uma queda. Não dá para, por exemplo, decidir construir uma outra fábrica para isso. Estamos realizando a projeção a longo prazo.
Dentro do cálculo de vocês, mesmo que de maneira conservadora, é possível que a vacina da dengue chegue ao braço de algum brasileiro ainda neste ano?
Sim, a gente está querendo que essa vacina já chegue para a população. Estamos muito entusiasmados com isso. Será uma mudança de paradigma, mas eu acho que o grande impacto (da vacina do Butantan) na dengue vai começar a surtir efeito em 2026.
Como estão os estudos da vacina da dengue para a população acima dos 60 anos?
Estamos aguardando a liberação da Anvisa. Já estamos selecionando os centros participantes, se tudo correr bem no segundo semestre já estamos aplicando as doses (no âmbito da análise). É um estudo menor, é preciso provar que a vacina é segura, tolerada nessa faixa etária, e também analisar em pesquisa se ela induz resposta protetora por meio de anticorpos no sangue, e comparar com outros estudos que já fizemos. Avalia-se segurança e imunogenicidade. Se conseguirmos realizar tudo esse ano, em algum momento em 2026 já teremos as informações em sua totalidade, para realizar o pedido de mudança de bula.
A gripe aviária começa a inspirar preocupação por conta de uma morte ocorrida nos Estados Unidos. O projeto da vacina do Butantan avançou?
A boa notícia é que já conseguimos concluir a fase pré-clínica. O pedido para começar a fase 1/ 2 (com voluntários) já está na Anvisa. Foi submetido o ano passado e eles levantaram algumas exigências, a gente respondeu logo antes do Natal e está de volta na mão deles. Já fizemos a seleção dos cinco centros participantes, São Paulo, São José do Rio Preto, Serrana, Belo Horizonte e Recife, que estão prontos para começar esse estudo fase 1/2. A intenção é avaliar se essa vacina consegue induzir anticorpos protetores após duas doses, com intervalo de 21 dias entre elas. Agora a gente está direcionando (o desenvolvimento) para esse vírus H5 que está circulando aqui na América e inclusive já causou uma morte nos EUA. O que está por trás disso não é só desenvolver esta vacina, é testar uma rota de desenvolvimento. E assim nos tornarmos capazes de trilhar um desenvolvimento usando um vírus H5 aviário. E, além disso, moldar uma regulamentação que permita adaptar essa vacina dependendo do vírus que eventualmente cause uma pandemia.
Tendo em vista o cenário internacional, é possível acelerar esse processo?
O que pudermos correr mais rapidamente com o estudo 1 / 2 melhor. Agora está nas mãos da Anvisa, eles dando ok nós começamos. Se pedirem mais modificações, atenderemos e depois começaremos. Outros países estabeleceram lotes estratégicos. Nos Estados Unidos hoje, não já para essa atualização (do vírus) porque eles estão nesse momento trabalhando nisso, mas eles sempre tiveram lotes estratégicos de uma vacina para gripe aviária. E ao que me consta, no mínimo, um ciclo de vacinação por habitante americano. Outros países têm coisa parecida. E o que a gente está tentando puxar nesse debate aqui no Brasil é uma coisa semelhante. Queremos abrir espaço para discutir isso agora, para ter o lote estratégico.
Outro projeto na Anvisa é a da vacina de Chikungunya. Está avançado?
Estamos respondendo o que acredito ser a última rodada de exigências que a Anvisa levantou, são coisas relativamente simples. Esperamos, logo que apresentarmos essas respostas, que a vacina possa ficar disponível. Agências internacionais como o FDA (dos Estados Unidos) e EMA (da União Europeia) porém fizeram exigências de estudo pós-licenciamento e é possível que a Anvisa peça isso para nós. Não tem problema, estamos prontos para realizar.
Em que situação está a fábrica multipropósito anunciada ainda na pandemia?
Estamos realizando alguns processos, a expectativa produzir algumas vacinas lá. A prioridade é parte do IFA (insumo farmacêutico ativo) da dengue. Nas próximas semanas já deve começar a funcionar. Pensamos que lá podemos produzir dengue, raiva — estamos retomando essa produção – e da Hepatite A. Essas três estão bem solidificadas.
Como foi a tomada de decisão para encerrar os testes da Butanvac, vacina própria da Covid-19? Foi uma decisão pragmática. Eu tenho um compromisso com o dado científico da maneira mais rigorosa possível. O estudo foi um sucesso. Na fase 2, eu queria que o estudo me desse a resposta se a vacina atingiria os critérios de aprovação. O estudo respondeu. Cumprimos nosso papel de dar essa resposta. Temos que ter cuidado com as expectativas e explicar para as pessoas que pode não dar certo. Os pesquisadores ficaram desapontados, mais do que bravos. Um dos patrocinadores ficou bravo. Paciência, pode ficar. Eu sigo os dados. Isso pode acontecer com qualquer desenvolvimento, é da natureza dos produtos biomédicos.
Ainda há a possibilidade do Butantan entrar num desenvolvimento de Covid-19?
Existe sim, mas ainda não posso revelar. Torça por nós.