Como Trump foi convencido a perdoar Ross Ulbricht, ''rei do tráfico de drogas'' online
Pioneiro do Bitcoin foi preso por criar o Silk Road, o maior mercado online de drogas do mundo; aliados libertários e entusiastas de criptomoadas aproveitaram candidatura de Trump para negociar libertação
Em dezembro de 2023, Angela McArdle, presidente do Partido Libertário, viajou para Mar-a-Lago, na Flórida, para se reunir com Donald Trump. O republicano queria saber como conquistar eleitores libertários, grupo que apoia o lema de “governo mínimo e liberdade máxima” — e que ele achava que poderia ajudá-lo a reconquistar a Presidência —, disse McArdle em entrevista.
Ela tinha uma sugestão: libertar Ross Ulbricht, pioneiro do Bitcoin que foi condenado à prisão perpétua em 2015 por criar o Silk Road, o maior mercado online de drogas do mundo.
“Eu adoro libertar as pessoas”, teria dito Trump, segundo McArdle.
Cinco meses depois, ela o recebeu na convenção nacional do Partido Libertário, onde ele anunciou no palco que, se fosse eleito presidente, libertaria Ulbricht, considerado um herói libertário por construir um mercado ilegal fora do alcance do governo.
Na terça-feira, um dia após sua posse, Trump cumpriu a promessa. Ele ligou para a mãe de Ulbricht, Lyn Ulbricht, para informá-la pessoalmente que havia concedido perdão total ao filho, agora com 40 anos.
Em uma postagem no Truth Social, Trump disse que a decisão foi “em homenagem a ela e ao Movimento Libertário”, que o apoiou “fortemente”.
O perdão de Ross Ulbricht não era algo óbvio na agenda de Trump. Ao contrário das quase 1,6 mil pessoas que receberam perdões ou comutações nesta semana por seu envolvimento no motim de 6 de janeiro, Ulbricht tinha pouca conexão direta com o presidente.
No entanto, a decisão vinha sendo preparada há mais de uma década, graças ao ativismo contínuo dos apoiadores de Ulbricht — incluindo investidores em criptomoedas, políticos libertários e, especialmente, Lyn Ulbricht, que foi uma defensora vocal da libertação do filho.
Muitos deles tiveram um nível incomum de acesso a Trump.
Quando ficou claro, no ano passado, que Trump seria o indicado republicano, eles conduziram uma campanha de lobby nos bastidores para garantir o perdão — inclusive prometendo arrecadar dinheiro para sua candidatura eleitoral —, o que se transformou em um caso exemplar de como um grupo com um interesse especial pode se mobilizar para influenciar o presidente.
‘Trump é um negociador’
McArdle disse que foi colocada em contato com Trump por Richard Grenell, um de seus conselheiros de longa data e ex-diretor interino de inteligência nacional.
Ele sugeriu que ela abordasse as conversas com Trump como uma negociação comercial. Segundo McArdle, Grenell teria dito que o republicano “é um negociador” e que ela não deveria ter “medo de pedir algo” a ele. Grenell, Ulbricht e a administração Trump não comentaram o assunto.
— O perdão de Ross Ulbricht mostra que, se você tem uma base concentrada de pessoas ao redor de Trump, terá uma chance muito boa de obter um perdão — disse Dan Richman, ex-promotor federal e professor na Escola de Direito de Columbia. — Existem problemas com o sistema de perdão funcionando dessa forma.
Ulbricht lançou o Silk Road em 2011 e o transformou em um dos pontos mais populares da chamada dark web, um canto oculto da internet acessível apenas por meio de um navegador especial.
O Silk Road facilitou mais de 1,5 milhão de transações, gerando mais de US$ 200 milhões em receita com a venda de heroína, metanfetamina, cocaína e outras drogas, segundo as autoridades. Os usuários realizavam transações anonimamente com bitcoin, então uma criptomoeda incipiente, e podiam publicar avaliações de produtos no estilo da Amazon.
Rede global de tráfico
Em 2013, o FBI prendeu Ulbricht em uma biblioteca de São Francisco e o acusou de administrar o Silk Road. No tribunal, os promotores apresentaram evidências de que Ulbricht também havia solicitado assassinatos de pessoas que considerava ameaças ao negócio, embora ele nunca tenha sido julgado por acusações de assassinato por encomenda e não houvesse indícios de que qualquer morte tivesse ocorrido.
Pelo menos seis mortes foram atribuídas a drogas compradas no Silk Road, disseram os promotores no tribunal. Um juiz federal do Distrito Sul de Nova York, onde o caso foi julgado, chamou Ulbricht de “o chefão de uma rede global de tráfico de drogas digital” cujas ações foram “terrivelmente destrutivas para o tecido social”.
Em 2015, Ulbricht foi condenado à prisão perpétua por distribuição de drogas, lavagem de dinheiro e outras acusações, sendo posteriormente transferido para uma prisão federal no Arizona.
A punição foi considerada severa por alguns especialistas jurídicos. Também gerou protestos de libertários que se opunham a penalidades rigorosas para drogas e de entusiastas de criptomoedas que viam Ulbricht como um pioneiro. David Bailey, CEO da publicação de notícias Bitcoin Magazine, que fez campanha pela libertação de Ulbricht, sustenta que o Silk Road levou 1 milhão de pessoas para o bitcoin — e que Ulbricht “representa muitas das visões ideológicas da comunidade”.
Pressão online
Da prisão, Ulbricht destacava sua conexão com o bitcoin. Em outubro de 2018, ele enviou uma carta para sua mãe celebrando o 10º aniversário da fundação da criptomoeda e comparou a si mesmo a um “pai orgulhoso” da tecnologia.
Em perfis nas redes sociais mantidos por sua família, ele também compartilhava desenhos, atualizações sobre sua jardinagem na prisão e reflexões sobre novas tecnologias. As contas incluíam links para petições online que pediam clemência, e Trump e membros de sua família eram comumente marcados.
“Acho que sou o pai distante na prisão, que não pode estar presente para ajudar a criar seu filho”, escreveu ele na carta, que foi posteriormente publicada pela Bitcoin Magazine.
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Nos bastidores, Lyn Ulbricht trabalhou para popularizar o slogan “Free Ross” (Libertem Ross), que se tornou um grito de guerra em conferências de criptomoedas. Ela também fez contatos com políticos republicanos e influenciadores de extrema direita, na esperança de alcançar o círculo íntimo de Trump.
Depois de perder a eleição de 2020, o republicano chegou a considerar a possibilidade de libertar Ulbricht, e pelo menos um lobista recebeu US$ 22,5 mil para ajudar a garantir sua libertação, segundo documentos financeiros. No entanto, Trump posteriormente deixou o cargo sem tomar nenhuma ação sobre o assunto.
Naquela época, a família de Ulbricht afirmou que “quanto maior a esperança, maior a decepção”, indicando que suas esperanças estavam “muito altas” por uma comutação da sentença.
Trump 2.0 e uma nova oportunidade
A nova campanha presidencial republicana ofereceu uma oportunidade renovada. Em 2023, Lyn Ulbricht retomou seus esforços para se conectar com republicanos influentes, incluindo Vivek Ramaswamy, que estava concorrendo à Presidência, segundo duas pessoas próximas a ela.
Ramaswamy, que não respondeu a pedidos de comentário, comprometeu-se a libertar Ross Ulbricht caso fosse eleito e falou abertamente sobre ter se reunido com a mãe dele.
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No final de 2023, McArdle foi contatada por Grenell, que pediu, em nome de Trump, conselhos sobre como conquistar o voto libertário, segundo ela. Pouco tempo depois, ela estava em um avião para a Flórida para se encontrar com Trump.
Na reunião, McArdle disse a Trump que Ulbricht foi vítima de excessos por parte da promotoria e de um sistema judicial tendencioso, ecoando reclamações que o ex-presidente havia feito desde que deixou o cargo.
— É o mesmo sistema judicial de Nova York que está dificultando a sua vida — disse a ele.
No ano passado, Trump e sua equipe também se reuniram com Bailey e outros representantes da Bitcoin Magazine, que pressionaram pela libertação de Ulbricht. Tracy Hoyos-López, que trabalhava para a revista, disse publicamente que o encontro foi organizado por Paul Manafort, presidente da campanha de Trump em 2016 (Hoyos-López é filha de Hector Hoyos, amigo e ex-sócio de Manafort).
Promessas cumpridas
Nas redes sociais, Bailey anunciou que planejava arrecadar um “fundo de guerra de US$ 100 milhões para a campanha de Trump.”
Ele também foi a Mar-a-Lago em junho, segundo disse em entrevista, onde entregou ao republicano uma carta de Lyn Ulbricht. Naquela época, Trump já havia prometido libertar Ulbricht na convenção do Partido Libertário — algo que ele repetiu em julho, durante outra convenção organizada pela Bitcoin Magazine.
Na ocasião, Trump prometeu liberdade para Ulbricht, mas sem apagar a condenação.
Por volta desse período, Trump também se reuniu em particular com Lyn Ulbricht, segundo McArdle, que foi informada sobre o encontro. Na época, a presidente do Partido Libertário enfrentou críticas negativas de outros libertários por suas interações com Trump.
Ainda assim, ela manteve as relações com o republicano, com relatos indicando que ela continuou em contato com ele até semana passada, quando solicitou que Trump concedesse a Ulbricht um perdão total da sentença, e não apenas a comutação.
“Promessas feitas, promessas cumpridas”, escreveu um assessor de Trump num e-mail enviado a ela, segundo uma cópia da mensagem vista pelo The Times.
Na noite de terça-feira, McArdle, Bailey e Hoyos-López se reuniram em uma transmissão ao vivo no X para aguardar atualizações. Bailey disse aos ouvintes que Lyn Ulbricht estava no Arizona se preparando para a libertação do filho.
Poucas horas após o perdão, uma conta no X controlada pela família de Ulbricht postou uma fotografia dele deixando o presídio com uma pequena planta e um saco de pertences. Como legenda, a postagem incluía: “Liberdade!!!!”.