Livro mais recente do ilustrador, autor de HQs e pesquisador Marcelo D'Salete, alia delicadeza e força para a reconstituição ficcional, mas bastante real do Quilombo de Palmares, em Alagoas
Detalhe da HQ 'Angola Janga' - Cortesia
Essa matéria começa com um convite. Um convite para você puxar pela memória o que sabe ou o que aprendeu sobre Palmares. Quais líderes saberia citar de cabeça além de Zumbi? Quanto tempo durou Palmares? O que você sabe sobre a dinâmica e o sistema que regia o lugar? Qual sua importância histórica e simbólica na construção do Brasil? Não se acanhe (ou sim, se acanhe!) se não souber responder essas perguntas elementares. O Brasil é assim com sua história. Padece de memória para persistir errando.
"Angola Janga" (pequena Angola, na língua banto quimbundo, nome original de Palmares), o mais recente livro de Marcelo D'Salete não é um livro didático, nem pretende contar a história do quilombo com rigor histórico acadêmico. Ainda assim, responde ou ilumina muitas questões sobre o fato. Mais uma vez, o autor se utiliza do olhar do oprimido (os escravizados), o que constitui em si uma nova abordagem do evento, trazendo um frescor necessário e quase um estranhamento, já que somos acostumados ao outro lado da narrativa. Ele fez isso em "Cumbe", seu livro anterior.
A importância do livro vai além da abordagem do tema. Ele já nasce um clássico das HQs nacionais, pelo fôlego artístico (mais de 400 páginas), pelo conteúdo e pela forma.
A reconstituição se dá a partir da subjetividade ficcional, mais sugestão e menos “historicismo” - tornando tudo palpável, bastante “real” - por mais contraditório que pareça. Nela, Marcelo D'Salete conta os últimos anos ou a derrocada de Palmares, mas com constantes flashbacks para contextualizar os momentos narrados.
Há pouco texto nessa HQ, muitas sequências “mudas”, o que dá maior carga dramática, acentuada pelo traço quase expressionista, carregado de contrastes de D´Salete. Seu desenho é delicado, mas tem muita força. É belo, e também melancólico. Características que ecoam o drama vivido pelos palmaristas.
"Angola Janga", o livro, é um projeto pessoal que, entre pesquisas e labuta, consumiu onze anos do autor. Parece que sua publicação veio num momento em que o País, mergulhado em radicalismos, vê a questão racial ganhando nova visibilidade. Nós costumamos nos ver e nos projetar como se no Brasil houvesse integração racial.
Não reconhecemos o racismo estrutural praticado na falta de representatividade dos negros em muitas faces da nossa sociedade. Fora o racismo sutil, aquele do dia a dia, quase naturalizado, mas igualmente cruel.
A abolição tardia e recente (historicamente falando) e que nunca teve um projeto de inserção dos escravizados numa sociedade livre, sentenciou essa população à uma condição de cidadãos de segunda categoria, com reflexos sentidos e vividos até os dias de hoje. Se não temos culpa pelos erros do passado, temos responsabilidade por corrigir os rumos do presente. Entender esse processo é o caminho para a construção de uma sociedade mais integrada, inclusiva. O Brasil precisa disso mais do que nunca para curar suas chagas - de sempre e de hoje. "Angola Janga" presta esse serviço numa roupagem artística, trazendo um discurso contundente.
Detalhe da HQ 'Angola Janga' - Crédito: Cortesia
Saiba mais
Palmares ganhou força com a chegada dos Holandeses em Pernambuco. Aproveitando que os portugueses estavam ocupados com o “invasor”, hordas de escravos fugiram formando quilombos. Aproveitaram esse período para se estabelecerem e se organizarem. Palmares era um complexo de vários quilombos com uma população comparável à do Recife da época. Havia hierarquia e um complexo tecido social com funções e atribuições específicas. Eles sabiam o que estavam fazendo.
Sofreram vários ataques e tentativas de derrubada. Seu final se deu com a investida de mercenários paulistas (Bandeirantes), verdadeiros bárbaros com métodos desumanos. Os caras eram hard core. Para muitos (de Euclides da Cunha até Tom Zé), nós nordestinos (pasmem!) descendemos da colisão desses paulistas vindos do interior do Brasil, com os portugueses do litoral. Espremidos, os nativos indígenas e os africanos escravizados. Como a vinda desses paulistas foi motivada pelo socorro às instituições temerosas com o levante negro, perceba a importância de Palmares em nossa gênese nordestina.
Marcelo D'Salete, ilustrador e autor de 'Angola Janga' - Crédito: Rafael Roncato/Divulgação
ENTREVISTA // Marcelo D'Salete
Marcelo D'Salete, 38 anos, é paulista, com formação em design gráfico e artes plásticas, além de ser mestre em história da arte. Seus primeiros quadrinhos trazem a tônica urbana e seus personagens invisíveis. Garotas de programa, guardadores de carro... pessoas do nosso cotidiano que pouco damos conta. Muitos desses personagens são negros, como ele próprio. Nos últimos dois livros, ele foca sua lente no passado histórico brasileiro, resgatando nossa memória pouco estimulada. No dia que traçarem o caminho do quadrinho brasileiro, certamente a obra de D'Salete vai estar entre as mais importantes.
Você diz que "Angola Janga" levou 11 anos de trabalho. Quanto [deste tempo] foi [usado] pesquisando e quanto foi desenhando?
Comecei em 2016. As pesquisas para o roteiro e imagens foram até 2010. A partir desse ano, comecei a finalizar. Nesse meio tempo, surgiram outros livros: "Noite Luz" e "Encruzilhada". Outro livro, "Cumbe", foi gerado diretamente das pesquisas para fazer o "Angola Janga".
Foi um projeto fácil de propor à editora? Toparam logo?
Em geral, faço os livros de quadrinhos que realmente desejo fazer. Eu preciso de muito tempo para deixar o projeto pronto. Sou bem devagar para finalizar e, além disso, trabalho com outras coisas. Depois de ter o livro já no processo final, mostro para o editor e vejo se topam. Por enquanto, tive sorte, achei os editores certos.
Quais as maiores dificuldades para fazer o livro? Poucos documentos para respaldar a pesquisa, iconografia...?
Minha intenção era fazer uma leitura bem pessoal de Palmares. Para isso, pesquisar foi importante. Há uma ausência enorme de imagens sobre Palmares. Tive de recorrer aos desenhistas e pintores holandeses e a outras referências mais contemporâneas para imaginar os palmaristas e o contexto de época.
Na sua percepção, como o Brasil vê o papel da escravidão na sua formação e como identifica seus reflexos nos dias de hoje?
A escravidão foi a base de toda economia e sociedade que temos hoje. Mas desde o pós-abolição, há uma tentativa sistemática de apagar os traços desta história. E, inclusive, era propósito da elite do século 19 acabar de vez com a presença de milhares de africanos no país. A imigração de europeus tinha este objetivo em mente, era parte do projeto político da época. As teorias raciais do século 19, diferenciando negros e brancos, foram usadas para dividir e deixar grande parte da população sem acesso à cidadania plena. Até hoje vivemos seus reflexos.
Como foi sua migração dos quadrinhos com temática urbana para esse mais histórico? Foi um processo natural ou um desejo de sempre?
Este era um projeto bem antigo. Mas não foi nada fácil me acostumar a representar o Brasil colonial. Por outro lado, aprendi muito nesse processo todo. Foi necessário a desconstrução e construção de algo novo em termos de traço, composição etc.
Como tem sido a repercussão de "Cumbe", no exterior? Qual país teve melhor acolhida?
"Cumbe" foi publicado em Portugal (Polvo), França (Çà et Là), Austria (Bahoe Books), Itália (Becco Giallo) e recentemente nos EUA (com o nome "Run for it", pela Fantagraphics). Pude ir para Berlim e Viena apresentar o trabalho e houve conversas muito interessantes com o público. Em Portugal, ele foi indicado para leitura em escolas públicas. Na França, foi escolhido como um dos melhores trabalhos sobre escravidão por um site especializado em quadrinhos.
Nos EUA, nestes últimos meses, já recebeu diversas críticas muito positivas, colocando a obra como uma das melhores do ano. Estamos negociando com algumas editoras a publicação do "Angola Janga" no exterior também. É provável que ele tenha uma trajetória tão positiva quanto a do "Cumbe". Há interesse grande pelo tema e pelo modo de se contar essas narrativas. E é importante dizer que são histórias sobre nosso passado e sociedade.