Perspectivas sobre o mercado do livro digital no Brasil: será o fim do papel impresso?
Contrariando previsões, formato físico e digital devem conviver por bastante tempo. O mercado livreiro enfrenta retração no país, embora aparente melhora nos últimos meses. Livro digital corresponde a apenas 1,9% das vendas no Brasil
O profetas do Apocalipse decretam, há anos, o fim do livro de papel: gente como os filósofos Walter Benjamin, nos anos 1920, e Marshall McLuhan, na década de 1960, já anteviam o declínio do suporte. Mas isso é algo que, por enquanto, está longe de acontecer - tanto no Brasil como no resto do mundo. Ao contrário: um formato alimenta o outro, e durante o boom que o livro digital apresentou, há cerca de uma década, as vendas dos livros impressos também subiram.
Neste momento em que o mercado livreiro enfrenta uma retração, as obras em formato eletrônico também vêm sofrendo. A fatia que conquistou no Brasil ainda é ínfima: apenas 1,9% do total de vendas. Isso, porém, não desencoraja aqueles que sabem que o suporte é economicamente interessante e deve revolucionar a distribuição e consumo de livros, e continuam investindo na produção destas obras.
Nesta edição, damos prosseguimento à série sobre o livro no Brasil, iniciada em 14 de julho. Na próxima reportagem, trataremos do velho e do novo, falando de sebos, História e dos caminhos que as pequenas livrarias têm encontrado para sobreviver.
Leitora voraz, a jornalista Eduarda Fernandes sempre gostou do cheirinho de livro novo e gastava mais do que podia nas livrarias. Sua transição para o meio digital se deu aos poucos. Primeiro, aderiu às compras online, virando freguesa habitual da Estante Virtual, uma espécie de conglomerado de sebos de todo o Brasil.
Em novembro passado, durante uma promoção de Black Friday, ela comprou um kindle (dispositivo eletrônico de leitura de textos lançado pela empresa Amazon em 2007). De lá para cá, ela baixou mais de 400 obras e já leu cerca de 80. "Em dois meses, eu já tinha pago o valor do aparelho, que custou cerca de R$ 350", comemora Eduarda.
Para ela, que lê semanalmente pelo menos um livro e nas férias chega a consumir uma obra por dia, optar pelo formato foi libertador. "Na Amazon, existe um sistema de assinatura chamado Kindle Unlimited. Através dele, compro por R$ 3 ou 4 um livro que, se fosse na forma impressa, custaria R$ 30", exemplifica.
Eduarda Fernandes se tornou uma leitora ainda mais intensa após adquirir um leitor de livros digitais - Crédito: Anderson Stevens / Folha de Pernambuco
Este é um dos motivos que explica o fato de que as pessoas passaram a ler mais, nos países em que o livro digital tem uma inserção mais ampla. Uma pesquisa realizada em 2016 pela Pew Research Center, nos EUA, diz que a maioria dos norte-americanos prefere os livros impressos, mas que os leitores de e-books tendem a consumir mais obras do que aqueles que limitam sua leitura aos livros de papel: uma média de 24 títulos por ano, contra 15 consumidos pelos leitores do formato mais tradicional.
Sobre o livro digital, Eduarda só vê vantagens: o custo é mais barato, o armazenamento dos livros é mais compacto, o aparelho é leve e fácil de carregar e ainda é possível ajustar detalhes, como o tamanho da letra e cor do fundo do texto. "Eu morria de medo, mas hoje meu consumo está sendo 100% digital", afirma. Ainda assim, ela admite que o formato só é interessante para quem lê muito. "Se é um leitor esporádico, melhor não gastar com um aparelho caro que vai ficar sem uso", adverte.
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O perfil de Eduarda é exatamente o que Marcos Pereira da Veiga, que é presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e da editora Sextante, vê se concretizar no mercado de livros digitais. "Só funciona para leitores assíduos", frisa.
Segundo Veiga, a experiência internacional tem mostrado que até um momento existe um "teto" para consumo desse tipo de obra. Mesmo nos Estados Unidos, país onde o livro digital mais se popularizou, ainda não se conseguiu superar um patamar de 15% do mercado livreiro como um todo.
Por enquanto, livro digital corresponde a apenas 1,9% das vendas no Brasil - Crédito: Arthur de Souza/Arquivo Folha
No Brasil, o Censo do Livro Digital - uma pesquisa realizada em conjunto pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) - mostrou que menos da metade das editoras entrevistadas está investindo no segmento, e que o livro impresso ainda é responsável por 98,91% das vendas no país.
O formato digital chegou ao Brasil oficialmente em 2009, mas teve suas vendas ampliadas em 2012, após a entrada de grandes corporações neste mercado (como a Livraria Cultura, que vende o leitor Kobo, e a já citada Amazon).
Adesão ao livro digital passa por questão cultural
Se engana quem acha que o livro digital é novidade: ele foi criado em 1971, quando o americano Michael Hart montou a primeira biblioteca digital do mundo, o Projeto Gutenberg. Ao longo destas quase cinco décadas, o processo de inserção desse novo formato no mercado passou por vários momentos e adaptações, mas ainda não alcançou o patamar que seus defensores pretendem.
"É uma questão cultural, e por isso está levando mais tempo do que a gente imaginava", conta o engenheiro eletrônico Alexandre Albuquerque, que é diretor e proprietário da Pluri Educacional, empresa sediada no Recife que atende a editoras de todo o Brasil (como a FTD, a Moderna e a Somos - que congrega a Saraiva, a Ática e a Scipione, entre outras) e oferece, entre outros produtos, uma plataforma de produção de material digital.
"Nossa ideia é olhar para o livro do futuro. Se a gente conceber o livro eletrônico como uma cópia do livro impresso, vai perder muito da potencialidade que tem. É preciso transformá-lo em algo mais interativo, com diversos elementos agregados, como vídeos, fotos, áudios e links. Aí, sim, ele pode desempenhar um papel que o livro impresso não é capaz de realizar", afirma.
Alexandre diz que, através da plataforma, as próprias editoras podem enriquecer seus arquivos originais, e depois criptografar e colocar à venda. "Normalmente, esses materiais são formatados para qualquer ambiente, como e-book, Android ou IOS", descreve.
O empresário vê o setor didático como um filão interessante a ser explorado, pois no caso dos livros digitais de literatura há menos o que agregar à obra. "A única vantagem, nesse caso, é não acumular vários livros numa estante. Num tablet, cabem mais de mil obras", destaca.
Entusiasta do formato, ele cita vantagens como eliminação dos custos de distribuição e estoque (o que pode se refletir no valor pago pelo cliente) e menor impacto ecológico (por não precisar destruir árvores para fazer papel).
Alexandre refuta a ideia da dificuldade de manuseio dos aparelhos leitores. "Algumas pessoas alegam fadiga ocular, mas ela é mais cultural que efetiva. Nem a idade é um fator determinante. Minha mãe, Regina, tinha mais de 80 anos quando ganhou um Kindle, que usava de forma intensa. Se adaptou muito fácil e adorava o fato de poder ampliar as letras", lembra.
Livro digital deve desempenhar um papel que o impresso não é capaz de realizar, diz Alexandre Albuquerque, da Pluri Educacional - Crédito: Anderson Stevens / Folha de Pernambuco
Outra empresa recifense que se dedica à produção de livros digitais é a Paradoxum, editora que foi lançada em abril do ano passado e foca em e-books certificados para vendas globais. "O objetivo da gente é facilitar a vida, tanto para autores novos como aqueles que já estão no mercado, mas querem ampliar o público leitor", descreve a gerente-executiva Fabiola Blah.
Ela explica que o e-book certificado é "de verdade", ou seja, não se trata de um texto que foi "transcrito" ou "exportado" do papel, como um arquivo do tipo PDF ou Word. "Um e-book de verdade segue todas as normatizações técnicas internacionais, com direitos autorais e sistema de proteção contra cópias não-autorizadas, diagramação e codificação para todos os aparelhos e dispositivos de leitura. Ou seja, qualquer celular, notebook, Kindle, tablet ou Ipad vai apresentar a experiência igual e otimizada", resume.
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Fabiola acredita que não adianta analisar o mercado do livro digital sob a ótica das vendas. "O livro impresso já vende pouco no Brasil, e o e-book ainda menos. Mas, para avaliar o uso e a leitura de e-books, a principal variável deve ser o público. Com um e-book certificado, você atinge pessoas a quem nunca imaginou chegar. Um brasileiro no Japão compra um e-book da Paradoxum em dois segundos. E vai ler em qualquer lugar, sincronizado com o celular, computador".
"O mercado de e-books é complexo, e reflete a realidade do mercado livreiro como um todo. O brasileiro não lê, e infelizmente não há nenhuma novidade nisso. Só que, dentro do universo dos brasileiros que leem, a migração para o digital caminha a passos rápidos. O que posso dizer, com certeza, é o seguinte: quem migra para a leitura digital, não volta mais. Então, é um processo que demora e que ainda está em expansão, mas é que tem uma sobrevida imensa, um público enorme a abraçar", afirma.
Gerente-executiva da Paradoxum, Fabiola Blah diz que quem migra para a leitura digital, não volta mais ao impresso. - Crédito: Paulo Rebêlo/Paradox Zero/ Divulgação
O livro como chamariz
Enquanto as vendas do livro digital ainda se consolidam, o consumo online se destaca, tanto para os impressos, como para os e-books. "Acho que o mundo todo caminha para o ambiente virtual. É algo que afeta o varejo inteiro", diz o presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Marcos da Veiga Pereira.
"É bastante prático comprar online, mas a loja física ainda é muito importante. Um dado curioso e significativo é que a Amazon, a maior vendedora de livros pela internet, está indo na contramão da teoria que diz que as livrarias vão acabar e abrindo lojas presenciais nos EUA", destaca por sua vez o presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Luis Antonio Torelli.
Segundo Torelli, os dados sobre venda à distância de livros não são precisos no país, porque a Amazon, que é a maior plataforma de vendas, tem a prática internacional de não divulgar seus números. "Perde o sentido fazer essa busca sem poder fazer essa contabilização", lamenta.
Apesar disso, ele acredita que as vendas pela internet, apesar de terem crescido, ainda são inferiores às da venda de livros em pontos físicos, que em 2017 tiveram um volume de 4.477.844 unidades comercializadas em livrarias, supermercados e outros pontos comerciais físicos.
Veiga Pereira critica postura agressiva das plataformas online de livros, que prejudicam livrarias menores - Crédito: Divulgação
Na briga pelos clientes, os grandes descontos ofertados na internet agradam quem compra, mas prejudicam outros integrantes do mercado do livro. Os pequenos livreiros de outros países contam com a proteção do governo, o que é comum na França, Alemanha, Itália, Portugal e Espanha.
"Eles protegem o varejista, impedindo uma distorção que acontece no Brasil. Lá, é proibido vender lançamentos com descontos abusivos. Aqui, o que acontece é que as grandes redes oferecem percentuais que significam que não vão ter nenhum lucro ou, até, prejuízo, oferecendo o livro como um chamariz, porque o custo da captura do cliente compensa. Isso é concorrência desleal e não faz sentido, porque vai contra a lei da oferta e da demanda e obedece a outra lei, a do oportunismo, que prejudica o mercado livreiro como um todo", critica Veiga Pereira.