Entrevista com Laurentino Gomes: um mergulho na origem da exclusão social

Escritor Laurentino Gomes prepara nova trilogia de livros de história, nos quais aprofunda a reflexão sobre a herança africana e escravagista no País. Ele passou 18 dias no Nordeste para esta pesquisa

Laurentino Gomes, escritor e jornalista - Divulgação

O escritor Laurentino Gomes, autor da trilogia de livros "1808", sobre a fuga da família real portuguesa para o Rio de Janeiro; "1822", sobre a Independência do Brasil; e "1889", sobre a Proclamação da República, já vendeu mais de 2 milhões de exemplares no Brasil, em Portugal e nos Estados Unidos. Ele realizou em novembro uma viagem de pesquisa de 18 dias por Pernambuco, Alagoas e Paraíba, quando concedeu à Folha de Pernambuco essa entrevista exclusiva, em que fala sobre o seu novo projeto literário e faz uma profissão de fé na democracia brasileira. Confira.

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O senhor poderia nos contar sobre o seu atual projeto?

Estou em fase de pesquisa e escrita do primeiro volume de uma trilogia sobre a história da escravidão no Brasil, a ser publicada entre 2019 e 2021, um livro por ano. Acredito que esse seja o tema mais importante de toda a história brasileira e precisamos urgentemente refletir sobre ele. O Brasil foi o maior território escravagista das Américas. Recebeu ao longo de três séculos entre 4,5 milhões e 5 milhões de escravos, cerca de 40% dos aproximadamente 11,5 milhões de cativos transportados da África para o continente americano nesse período.

Foi também o país que mais resistiu no Hemisfério Ocidental a acabar com o tráfico negreiro (em 1850) e o último a abolir a escravidão (em 1888). Estudar a herança africana e escravagista é fundamental para entender a história do Brasil e as dificuldades e características do País atualmente. Apesar disso, são poucas as obras no mercado editorial de livros que expliquem o assunto em detalhes e linguagem acessível ao leitor comum. O objetivo desse projeto é preencher essa lacuna. 

Na sua passagem por Pernambuco, que lugares visitou?

A antiga capitania de Pernambuco foi o berço da escravidão indígena e africana no Brasil. Para estudar a escravidão no Brasil é preciso começar primeiro pela África. Depois, por Pernambuco. É o que estou fazendo. Passei alguns dias no Recife, visitei as fundações Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre; fui ao Pátio do Carmo (em Olinda), onde a cabeça de Zumbi ficou exposta em 1695; estive no município de Itambé, na região que pertenceu ao Conselheiro João Alfredo, o homem responsável pela texto da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Tudo isso me ajudou a ter uma visão mais precisa sobre a escravidão no passado e também sobre o seu legado no presente.

Qual o significado profundo da resistência de Palmares?

Palmares foi o maior e o mais duradouro refúgio de escravos de toda a história do Brasil. Resistiu durante cem anos aos ataques das autoridades coloniais. Nesse período, houve 17 investidas contra o quilombo, sendo 15 portuguesas e duas holandesas. Na fase final da guerra, a partir de 1768, houve, em média, uma expedição militar a cada 15 meses. Uma campanha tão obstinada só se explica pelo caráter simbólico de Palmares. Do ponto de vista militar, o quilombo nunca chegou a ser uma ameaça real contra a colônia portuguesa (ou holandesa durante a breve ocupação de Pernambuco). Mas admitir sua existência era aceitar um desafio à ordem escravagista vigente. Caso vitorioso, Palmares poderia ser tornar um exemplo para os demais escravos negros e africanos, que no final do século 17 já eram a maioria da população brasileira. Por isso, destruir Palmares se tornou uma questão de honra para as autoridades coloniais. 

Qual o legado da escravidão para o estado de exclusão social em que vivemos?

A escravidão, ao contrário do que se imagina, não está confinada aos livros de história, como se fosse um tema encerrado ou congelado no passado. É, em vez disso, um assunto cada vez mais urgente e presente na realidade brasileira. O grande abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco dizia que o Brasil estava condenado a continuar no atraso enquanto não resolvesse de forma satisfatória a herança escravocrata. Para ele, não bastava libertar os escravos. Era preciso incorporá-los à sociedade como cidadãos de pleno direito. O regime de escravidão, dizia, corrompia tudo e impedia que a sociedade evoluísse. "A escravidão não consentiu que nos organizássemos e sem povo as instituições não tem apoio, a sociedade não tem alicerce", escreveu.

É um desafio que, 130 anos depois da Lei Áurea, o Brasil ainda não conseguiu resolver. Liberdade nunca significou, para os ex-escravos e seus descendentes, oportunidade de mobilidade social ou melhoria de vida. Nunca tiveram acesso a terras, bons empregos, moradias decentes, educação, assistência de saúde e outras oportunidades disponíveis para os brancos. Nunca foram tratados como cidadãos. Os resultados aparecem nas estatísticas a respeito da profunda e perigosa desigualdade social no País.

Em 2007, quando o senhor lançou "1808", Lula iniciava seu segundo mandato; em 2019, quando lançar seu próximo livro, Bolsonaro estará iniciando o seu primeiro mandato. Como vê a trajetória da sociedade brasileira nesse período?

O Brasil passa por uma experiência inédita em sua história, que são mais de três décadas de democracia, sem ruptura. É uma jornada difícil, com altos e baixos, com frustrações, sustos e surpresas, mas é também a primeira vez em que todos os brasileiros são chamados a participar da construção do futuro. Democracia não é uma fórmula mágica, capaz de resolver todos os nossos problemas instantaneamente. É antes de tudo um longo e difícil aprendizado. Já elegemos um "herói dos descamisados", como Fernando Collor; depois um sociólogo; em seguida um sindicalista e retirante nordestino; em seguida uma mulher.

E agora temos Bolsonaro. Não estamos percorrendo um caminho linear, sempre em direção a um futuro melhor, de políticas públicas sábias e bem planejadas. Infelizmente, a democracia comporta tentativas, erros e acertos, desvios e até recuos. Mas é assim mesmo. Não existe outra forma de construir um país em que todos tenhamos a oportunidade de participar e fazer escolhas. Só precisamos ter paciência e calibrar as nossas expectativas. Acho que o Brasil pode melhorar, sim, mas não tão já quanto gostaríamos.

Na sua opinião, dada as declarações do então candidato, os direitos humanos estarão sob uma real ameaça no governo do agora presidente-eleito Jair Bolsonaro? 

Fiquei assustado com a crueza e a falta de sensibilidade que o candidato Bolsonaro demonstrou ao tratar de temas como a escravidão, o papel das mulheres, os direitos dos homossexuais, dos emigrantes e das pessoas mais pobres na sociedade brasileira. Infelizmente, esse discurso de ódio e enfrentamento rendeu votos e muita gente se valeu dele para ser eleita em 2018. Mas espero que o discurso de campanha seja diferente do comportamento e das decisões dos eleitos em seus respectivos cargos.

Espero, portanto, que o presidente Bolsonaro deixe para trás o discurso de palanque e governe para todos os brasileiros, levando em conta principalmente os mais necessitados, os mais desprotegidos. Precisamos urgentemente cicatrizar as feridas, superar as divisões e encontrar pontos de união, que nos ajudem a caminhar em direção ao futuro e enfrentar os desafios mais urgentes.