Ortega cometeu crimes contra a humanidade na Nicarágua, denuncia comissão da OEA

No relatório, que acabou sendo apresentado em Washington, os investigadores documentaram uma série de violações de direitos humanos cometidas pelo governo, pela polícia e por paramilitares

Daniel Ortega e Rosario Murillo, presidente e vice da Nicarágua - Marvin Recinos/ AFP

O regime de Daniel Ortega na Nicarágua cometeu crimes contra a humanidade, denunciou nesta sexta-feira (21) o grupo enviado ao país pela CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), ligada à OEA (Organização dos Estados Americanos).

O Grupo Interdisciplinar Especial de Investigação (GIEI), designado para investigar as mortes pela repressão a manifestantes em abril e maio, foi expulso do país na quarta-feira, na véspera da apresentação dos resultados de sua apuração em Manágua.
No relatório, que acabou sendo apresentado em Washington, os investigadores documentaram uma série de violações de direitos humanos cometidas pelo governo, pela polícia e por paramilitares.

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"Para o GIEI, conforme a informação disponível, se conclui que o Estado da Nicarágua levou a cabo condutas que, de acordo com o direito internacional, devem ser consideradas crimes de lesa humanidade, particularmente assassinatos, privação arbitrária de liberdade e crime de perseguição", afirmaram os especialistas. Na apresentação, foram exibidos vídeos que mostram a polícia usando armas de guerra contra manifestantes desarmados, além de paramilitares encapuzados atuando junto com a tropa de choque e o exército na repressão a civis.

O grupo disse que não teve colaboração do governo nem do sistema judicial em sua investigação e que baseou suas conclusões em relatos e provas obtidas por outros meios.
O relatório denuncia a conivência do sistema de saúde, que negou atendimento aos feridos e perseguiu médicos que o fizeram. Menciona, ainda, abusos sexuais e torturas nas prisões.

Para Paulo Abrão, secretário-executivo da CIDH, a denúncia por crime de lesa humanidade "abre a possibilidade de uma justiça futura para as vítimas dentro do país, mas também para que outros Estados possam processar os responsáveis pelo princípio da justiça universal". "E se um dia um novo governo no país aderir ao Estatuto de Roma [tratado que criou a Corte Penal Internacional], também será possível investigar estes crimes passados, pois são imprescritíveis. A justiça chegará", afirmou Abrão à reportagem.

Durante a apresentação, os especialistas nomearam chefes da polícia como responsáveis e ressaltaram o discurso do governo de classificar os manifestantes como inimigos.
"O discurso era de que são pessoas cheias de ódio, seres minúsculos, chegou a se falar de exorcizá-los. Houve muitos gestos de aval político à repressão", disse Pablo Parenti, membro do GIEI.

Claudia Paz e Paz, outra integrante da equipe, denunciou a conivência do sistema judicial em relação a "crimes gravíssimos" e a criminalização de "pessoas que exerciam sua liberdade de expressão e manifestação". Segundo ela, das 109 mortes documentadas pelo grupo, cem não chegaram à Justiça. "Onde estão os juízes da Nicarágua? Onde estão os promotores? O que mais me surpreendeu foi a falta de independência do sistema de Justiça e de autonomia da promotoria", afirmou.

Na tarde de quarta-feira (19), a Chancelaria nicaraguense anunciou a expulsão do país dos membros do GIEI e de outra missão da CIDH, o Mecanismo de Acompanhamento Especial para a Nicarágua (Meseni), acusando-os de agir de forma "ingerencista" e parcial em sua avaliação das violações dos direitos humanos no país. Em comunicado, a CIDH lamentou a decisão, disse que a Nicarágua continuará sendo uma prioridade e comunicou que o Meseni vai continuar funcionando a partir de sua sede em Washington. "Para isso, continuará em contato permanente com as organizações da sociedade civil, movimentos sociais, atores estatais e vítimas de violações de direitos humanos", afirma o texto.

Desde abril, a Nicarágua vive uma onda de protestos pela saída de Daniel Ortega e sua mulher, a vice-presidente Rosario Murillo. A repressão aos manifestantes deixou mais de 100 mortos, incluindo uma brasileira, mais de mil feriados e ao menos 400 presos. Muitos dos detidos têm sido enquadrados em uma lei de combate ao terrorismo criada às pressas em julho e condenados a penas de até 30 anos. Nos últimos 12 anos, o ex-líder sandinista se consolidou no poder por meio de alterações na Constituição, cassação de candidaturas, expulsão de políticos de oposição do Congresso e de uma eleição questionada que lhe deu, em 2016, o terceiro mandato.