Dos textos para os palcos: os caminhos da dramaturgia
Textos de teatro nem sempre precedem às encenações, mas é uma das formas de reconhecer o trabalho de dramaturgos e dar vida aos seus escritos
"O Rei da Vela”, texto de Oswald de Andrade escrito na década de 1930, foi encenado pela primeira vez no palco do Teatro Oficina, em São Paulo, levado por José Celso Martinez, pouco mais de 30 anos depois de publicado, mais precisamente em 1967. Considerado o marco do teatro moderno no Brasil, apesar de ter perdurado nas estantes, ganhou representação e, mais recentemente em 2018, 50 anos depois de sua estreia, voltou aos palcos, atestando que não cabem efemeridades na dramaturgia.
Sim, o texto de Oswald preexistiu ao palco, assim como tantos outros que saem das páginas dos livros e seguem para a linguagem do teatro. Ou pelo menos, assim deveria ser a dramaturgia, que tem exatamente o papel de transportar textos para serem representados.
Seguindo essa lógica, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e a Fundação de do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) lançaram o volume 1 do livro “Dramaturgias”, com obras premiadas da primeira edição do “Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia”, iniciativa que pretende incentivar a escrita para o teatro.
“Considero um incentivo para continuar escrevendo e ter o trabalho reconhecido. Políticas culturais com um olhar para o teatro, é um caminho para germinar bons frutos. Há gente para escrever e para apreciar”, ressaltou o escritor, dramaturgo, ator e publicitário Cleyton Cabral, vencedor do prêmio em 2016, na categoria dramaturgia (teatro adulto), com o texto “Talvez Sim, Talvez Não”, que abre o livro. Na edição de 2018 do Prêmio, Cleyton ficou em segundo lugar com a obra “Desculpe o Atraso, Eu não Queria Vir”, que ganhará montagem em São Paulo, no próximo mês de maio.
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A compilação é um alento para escritores de teatro, estimulam a criatividade e, para muitos teatrólogos, levam a representatividade do que está escrito para os palcos. Um rito natural para a dramaturgia do nosso conterrâneo Nelson Rodrigues, por exemplo. O teatrólogo, jornalista, romancista e cronista de costumes e do futebol brasileiro, é o dramaturgo com mais textos montados no Brasil - desde “A mulher Sem Pecado” (1941), passando por “Vestido de Noiva” (1943) e “O Beijo no Asfalto” (1961), só para citar alguns dos escritos do pernambucano encenados até os dias atuais.
“Temos um arsenal de dramaturgos pernambucanos, que deixaram vasta obra, a exemplo de Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, Osman Lins e Nelson Rodrigues. E temos os contemporâneos Luiz Felipe Botelho, Newton Moreno e André Filho, entre outros. Há muita gente escrevendo, experimentando e que Pernambuco revele mais dramaturgos, porque sempre haverá alguém para escrever e outro pra dirigir ou as duas coisas”, completou Cleyton.
Mas a realidade do teatro contemporâneo em Pernambuco nem sempre segue o caminho natural de textos teatrais preexistentes. Para Rodrigo Dourado, dramaturgo, ator, diretor e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a divulgação dos escritos para teatro é fundamental para deixá-los além das páginas dos livros e para tirá-los das estantes.
"Faltam iniciativas que façam com que nossa dramaturgia circule, se mantenha viva. Se existem outras vias, uma maior difusão, os textos serão encontrados por alguém, em algum momento. Não temos políticas públicas com os olhos voltados para a arte do teatro e iniciativas como a publicação da Cepe são importantes, mas tinha que ser distribuída por meio de uma difusão das peças que receberam prêmios, que não podem ficar apenas na edição, presas à prateleira”, protesta Dourado.
À frente do grupo Teatro de Fronteira, Rodrigo também foi premiado na última edição do prêmio Ariano Suassuna, em 2018, na categoria Teatro Adulto, com “Terminal” e com o mesmo texto ele também levou o prêmio da Fundação Nacional de Artes (Funarte).
“O concurso é, sem dúvida, uma forma de estimular a produção, leva o autor a sentar e a escrever, colocar suas ideias no papel, realizar um projeto. Até porque, no Brasil, a dramaturgia não é objeto de estudo fora do teatro, não temos o hábito de tê-lo em nossa educação básica e isso traz dificuldades”, ressalta ele, que compara a nossa formação de teatro a outros países, como Inglaterra, Espanha e França.
“A maneira como os ingleses estudam Shaskepeare, os espanhóis Calderon e os franceses e Moliet, por exemplo, refletem na produção teatral desses lugares. No Brasil só as pessoas de teatro conhecem os dramaturgos e ler e produzir dramaturgia não são construções que integrem a nossa rotina. E na América Latina, a produção de teatro é gigante, nós é que ainda somos muito tímidos na área”, completa Rodrigo.
A força de seguir na contramão
A primeira encenação de “O Rei da Vela”, de Oswald Andrade, causou rebuliço à plateia e não passou indiferente em meio a manifestações. Escrito em plena crise financeira de 1929, o texto trata da submissão de uma aristocracia decadente a uma burguesia ascendente, para servir ao capital estrangeiro. O texto de Oswald de Andrade, assim como outros tantos escritos da época, veio com tom de protesto, um fato que está arraigado à linguagem teatral até os dias de hoje.
“Acho que todo teatro que se faz, é de protesto, inclusive no Recife. Aqui não temos um mercado teatral forte, que permita produções e se sustentem por conta própria. Vivemos dentro de uma contracultura marginal, mas que tem muita força com grupos que avançaram em organização, com coletivos artísticos atuantes, boa produções, inquietudes e experimentações”, explica Rodrigo Dourado, destacando a importância de, em Pernambuco, haver militância forte.
Para o ator pernambucano Rafael Almeida, doutorando em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do Teatro de Fronteira, historicamente a arte de representar nos palcos tem um caráter questionador. “Desde os gregos o teatro mete o dedo na ferida, talvez por isso mesmo ele seja sempre temido”, assevera ele.
E corroborando as afirmações do dramaturgo Rodrigo Dourado, Rafael vê o descaso com o teatro como uma forma de tentar conter a força da expressão artística. “Mas o teatro sempre existirá e estará pronto para questionar, mesmo quando recua, é para avançar com mais força. Temos tido menos frequência de montagens no Recife, porque além de escassos recursos financeiros há também a falta de espaços, o que tem gerado um crescimento dos espaços alternativos, com movimentos do teatro domiciliar, por exemplo”, comenta.
Entre outras referências, desde a década de 1970 com o “Vivencial”, grupo de teatro de Olinda, passando pelos trabalhos do Coletivo Angu e chegando ao Teatro de Fronteira, não é de hoje que a cena teatral pernambucana busca alternativas para permanecer atuante.
A formação de grupos, com estéticas próprias e movimentos experimentais, de fato, ganha força, à medida que são pensados para continuar explorando temáticas que, por vezes, geram polêmicas e por isso mesmo encontram no teatro a possibilidade de, sem amarras, representarem linguagens de rua e movimentos marginais.
“Rituais e formas de simbolizar a vida em sociedade, são nascedouros do teatro. O homem tem a capacidade de dar ressignificações e oferecer olhares críticos, com o corpo e a voz, construindo metáforas em torno da vida. Por isso o teatro é a arte mais perigosa, porque pode subir ao palco despida de tudo”, finalizou Rodrigo Dourado que pretende, em 2019, continuar a produção do Teatro de Fronteira, circulando pelo país e mostrando as produções do grupo, inclusive a montagem de um espetáculo inspirado no precursor do movimentos dos "Sem Terra", por muitos considerados como o líder da Liga das Camponesas entre as décadas de 1940 e 1950.
"O trabalho vai levar, para o palco, a figura de Francisco Julião, pensando no momento político pelo qual estamos passando. E para difundir as produções autorais do grupo (Teatro de Fronteiras), "Luzir Negro" e "Na Beira" são espetáculos que vão integrar o nosso repertório em 2019".