'A homossexualidade já não é crime em Moçambique'

Entrevista com a ativista lésbica Micky Beula, da Beira/Moçambique

Micky Beula - divulgação

A organização LGBT Lambda (“Energia Positiva“ em grego) foi fundada em 2006 e continua a lutar pelo seu reconhecimento formal, uma vez que uma organização que advoga pelas minorias sexuais é considerada, pelo governo moçambicano, "incômodo público e imoral". Infelizmente, não é raro que as famílias contratem homens para estuprar familiares lésbicas, a fim de colocá-las "no caminho certo”. Ou "expulsar" a sua orientação sexual com espancamentos e privação de comida.

Micky Beula, de 39 anos, é lésbica e ativista LGBT, vive em relação estável com Vanussa, há 10 anos. Ela trabalha na Beira. Nesta entrevista para Heike Friedhoff, Micky conta como descobriu sua sexualidade, como a sociedade moçambicana reage aos homossexuais e como ela advoga, enquanto ativista da Lambda, pelos direitos de LGBTs.

H: Quando e como você despertou para a sua sexualidade?
M: Aos nove anos percebi que era diferente, mas naquela época não se falava abertamente sobre orientação sexual, porque era um tabu e ninguém conseguia me explicar o que significava que eu gostasse de garotas e gostasse de fazer coisas que especialmente meninos gostam, como jogar futebol e andar sem camiseta. Observei as meninas e devorei seus corpos com os olhos, mas não ousei dizer nada. Eu realmente gostei de uma garota do bairro e ela foi a primeira que eu beijei. Para mim, ela era minha amante, mas para ela era uma piada e eu não passava de uma amiga. Eu aceitei isso para poder continuar a beijá-la. Ela ainda é minha amiga e diz que me admira por ter tido a coragem de seguir meu coração e me esforçar para ser quem realmente sou.

No começo minhas irmãs eram as únicas com quem eu podia conversar e elas me explicaram que eu era lésbica porque me sentia atraída por mulheres. No início, mantive
minha orientação sexual em segredo frente ao resto da minha família. Só mais tarde, com a ajuda de minhas irmãs, contei a verdade aos meus pais e irmãos, e não foi fácil para eles aceitarem.

Eu fui discriminada na escola e as outras crianças me identificaram a palavras “feias” como "Maria menino". No começo, eu pensei que estavam fazendo isso porque eu me vestia como um garoto e gostava de jogar futebol, mas depois percebi que também estavam me discriminando por causa da minha orientação sexual. Entre a 8ª e a 12ª série, muitas vezes pensei em largar a escola porque não aguentava mais estar sendo constantemente insultada com palavrões e estar sendo atacada. Mas eu lutei e terminei meus estudos.

Micky Beula e companheira - Foto: Arquivo pessoal

H: Como é hoje? A sociedade moçambicana aceita pessoas com uma orientação sexual diferente?
M: Até hoje, existem tabus e discriminação contra os LGBTs e a maioria da sociedade é homofóbica e não considera outra orientação sexual como algo normal. Eles acham que somos possuídos por espíritos malignos e precisamos passar por uma limpeza espiritual para sermos libertados desses maus espíritos.

Eu sou uma mulher forte e invencível e muito clara sobre a minha orientação sexual, mas se eu não tivesse encontrado alguém como eu no movimento LGBT, eu não sei como eu iria suportar a discriminação cotidiana. A minha família agora aceita a mim e a minha parceira, mas ainda há problemas com a família da Vanussa, com quem estou há mais de 10 anos. Por exemplo, quando as celebrações familiares acontecem, Vanussa recebe um convite como solteira. Eles ignoram que somos um casal. Nós não iremos a tais eventos se não formos ambas convidadas.

HF: Você já foi vítima de violência por ser lésbica?
MB:
Felizmente, nunca experimentei violência física, mas a violência psicológica e verbal é frequente. As pessoas olham para você pejorativamente ou fazem comentários que doem muito, como se isso fosse normal. Eu luto contra os preconceitos diariamente.

H: Desde quando você é ativista LGBT e como chegou a este engajamento?
M:
Em 2005 comecei a me envolver como ativista porque sentia a necessidade de aprender mais sobre mim mesmo e porque queria me engajar para que um dia sejamos
aceitas integralmente e possamos exercer os nossos direitos como todo mundo. Eu vi que as preocupações de outros ativistas também são minhas preocupações. Desde 2014, trabalho na organização LGBT Lambda e sou coordenadora do Centro de Moçambique.

H: Quais as conquistas que a Lambda e o movimento LGBT já conseguiram alcançar em Moçambique?
M:
Nossa maior conquista é que a homossexualidade não é mais considerada um crime e que isso foi removido do código penal. Hoje, a homossexualidade é uma orientação sexual.

Lambda também lutou muito para não rotular as pessoas LGBTs com nomes pejorativos. Hoje já existe uma lei do trabalho que diz, que todo aquele que discriminar uma pessoa por causa da sua orientação sexual será julgado e condenado. O fato de que hoje, por exemplo, podemos dar palestras em escolas e de que existem
pessoas e organizações que também se identificam com a nossa causa são grandes conquistas para nós.

Através da existência da Lambda, mais pessoas LGBTs encontraram a coragem de assumir abertamente a sua orientação sexual. Há também casais LGBTs que adotaram
crianças e a Ação Social motiva outros casais homossexuais a adotarem também, pois tiveram boas experiências. Por mais de 10 anos, Lambda vem lutando pela sua legalização e até ao final do ano retrasado conseguimos um sucesso parcial nesse processo, já que o Conselho Constitucional de Moçambique afirmou que se recusar a legalizar a Lambda é ilegal. Esperamos que o processo possa progredir agora.


Casais moçambicanos - Foto: Arquivo pessoal

H: O que você deseja para o futuro? Você tem um sonho?
M:
Eu gostaria de ver os direitos humanos da comunidade LBGT em Moçambique reconhecidos e quero ser respeitada e exercer os meus direitos como qualquer outra/o. Meu
sonho é casar e fazer um cruzeiro com minha esposa Vanussa e conhecer o mundo. E gostaria de ser conhecida como uma das pessoas que advoga pela visibilidade e pelos direitos das pessoas LGBTs em Moçambique.

H: Você quer fazer um comentário final?
M:
Seria ótimo ter contatos com organizações LGBTs em outros países e trocar ideias com elas, por exemplo, sobre o problema da legalização e que estratégias podem ser tomadas para alcançá-la. Ou como conseguiram passar leis como o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Seria muito útil para nós aprendermos e nos beneficiarmos das experiências de outros países.

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*Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).

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