Romance do argelino Kamel Daoud remove camadas do clássico de Albert Camus

Recém-lançado no Brasil, “O Caso Meursault” é uma resposta metaficcional a Camus

Márcio Pochmann, economista, pesquisador e professor da Unicamp, vem ao Recife nesta quinta (28). - Reprodução/Facebook

Sem “O Estrangeiro”, do franco-argelino Albert Camus, o século 20 teria sido bem menos interessante. Publicado em 1942, o livro produziu um forte impacto em sua época, ao combinar a expressão mais clássica do romance francês à dicção da prosa moderna, sobretudo norte-americana.

Também causou surpresa o seu narrador, a principal novidade literária do livro, como o próprio Camus (1912-1960) ressaltou: “A narrativa em primeira pessoa, que serve habitualmente à confidência, foi colocada em ‘O Estrangeiro’ a serviço da objetividade”.

É do máximo de objetividade, justamente, que brota a radical reflexão do escritor sobre o sentimento do absurdo da vida -fundamento filosófico de toda a obra de Camus.

Francês numa terra de argelinos, o narrador, Meursault, é uma peça solta na sociedade, sem ilusões sobre a vida e o mundo, incapaz de mentir para si mesmo e para os outros.

Com metódico distanciamento e impiedosa franqueza, ele descreve a escalada gratuita dos fatos que o levaram a ser condenado à morte: desde a morte da mãe até o assassinato de um árabe, que alvejou com vários tiros em uma praia, “por causa do sol”.

A partir da tragédia do “árabe” anônimo, o escritor argelino Kamel Daoud (1970) construiu uma resposta metaficcional a Camus em “O Caso Meursault”, agora lançado no Brasil, em acurada tradução de Bernardo Ajzenberg.

Fôlego
No livro de Daoud, o “árabe” ganha uma nacionalidade, a argelina, assim como um nome, Moussa, e sua história é contada a um estrangeiro pelo irmão mais novo, Haroun.

A ideia de fazer uma réplica pós-colonialista a Camus, de desafiar a sua pretensa insensibilidade a respeito da situação social dos argelinos, de desmoralizar o programa filosófico camusiano, expondo o seu ponto cego político, tudo isso se esgotaria em dois tempos não fosse Daoud um escritor de fôlego.

A sua bem-sucedida solução para tal investida consistiu em criar um narrador em primeira pessoa em tudo diferente de Meursault: contraditório, prolixo, sentimental, às vezes autoindulgente e covarde, outras vezes, rebelde e cruel.

O livro de Daoud se impõe na contramão do de Camus: como uma longa confidência, em que a indiferença de Meursault pela sociedade e pelo sentido último das coisas dá lugar à busca acidentada da verdade por Haroun, com suas hesitações, seus ressentimentos e seus erros. Do que se deduz que Daoud não está interessado em fazer uma condenação moral, mas criar um confronto literário.

Para quê? Para permitir que uma “voz outra” se expresse na língua do colonizador, única maneira de trazer à tona o não dito e também ganhar distância de sua própria condição, interrogando-se como argelino, como escritor, e como a fusão dos dois: escritor argelino.

Fala o autor pela boca de Haroun: “Por um lapso de tempo, alcancei a genialidade de seu herói [Camus e/ou Meursault, os papéis se misturam]: dilacerar a língua banal do dia a dia para emergir no lado avesso do reino, ali onde uma língua mais perturbadora se encontra à espera, para poder descrever o mundo de outra maneira”.

“O Caso Meursault” é um livro desafiador, cujo efeito maior é remover a camada de mito e monumentalidade que pesa sobre o clássico de Camus para devolvê-lo ao diálogo vivo com o mundo e à produção de novos sentidos, de novos mundos.