Casas de reza indígenas são incendiadas em cenas de intolerância religiosa e disputa de terra
Segundo o Conselho Missionário Indigenista (Cimi), os ataques a casas de reza pioraram desde 2020, e os Guarani Kaiowá são a principal vítima
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A noite era de lua cheia e o silêncio na Terra Indígena Rancho Jacaré, em Laguna Carapã, no Mato Grosso do Sul, foi rompido pelo crepitar do fogo na casa de reza de Ricardo Benites, 74 anos, e sua esposa, Martina Almeida, de 72. O ritual do povo Guarani Kaiowá havia se encerrado há duas horas e a casa estava vazia. As chamas destruíram sementes e mudas de ervas e árvores frutíferas.
Foi o quinto incêndio criminoso contra templos religiosos indígenas no estado este ano. Só na Rancho Jacaré ocorreram três. Os outros foram nos tekohas Avaeté, Takuapiri, Amambaí e Guapoí. A prática alcança outros estados. No fim de semana passado, o fogo destruiu uma casa de reza na Terra Itapuã, em Viamão (RS), cujo processo de demarcação dura 12 anos e está parado desde que estudos concluíram que a área é de ocupação tradicional indígena.
Os incêndios são golpe duro para os kaiowá. As casas de reza abrigam o chiru, instrumento religioso vital. Ultimamente, dezenas deles têm virado cinzas. O antropólogo Fábio Mura, professor da Universidade Federal da Paraíba, que estuda o chiru, explica que ele tem formato de cruz ou vara e é passado por gerações em séculos. O nome vem da árvore de que é feito — em português, pau-de-bálsamo.
— O chiru não é mero objeto, mas “sujeito de ação”. É um “ser vivo” — explica.
Segundo Mura, os kaiowás conversam com o chiru, que os coloca em contato com as divindades. Ele não pode tocar o chão e cada um deles tem um dom, dependendo do local onde estava plantada a árvore da qual foi feito. O chiru é usado por rezadores, casais tidos como exemplo para o grupo familiar, que é extenso.Como Ricardo e Martina.
De acordo com a tradição dos povos, o chiru afasta males e cura doenças se usado com sabedoria. Caso contrário, pode provocar fúrias da natureza, pragas e doenças. É suporte das famílias e da própria Terra.
— Quando a nossa casa de reza foi incendiada, sentimos como se fosse um pedaço de nossa vida sendo queimada. Sofremos muito, choramos muito — diz Ricardo.
Flávio Machado, do Conselho Missionário Indigenista (Cimi), conta que os ataques a casas de reza pioraram desde 2020. Segundo ele, um ano antes, num dos casos de maior dor entre os kaiowás, cinco chirus de mais de 200 anos foram queimados em incêndio na Terra Indígena Jaguapiré, em Tacuru, na reserva de Dourados (MS).
Era a casa de reza de Getúlio Juca e de sua mulher, Alda, feita de madeira e sapé, que queimou em menos de 20 minutos. Três chirus foram destruídos. O rezador conseguiu salvar apenas um. Depois do fogo, foram feitas três noites de reza para, segundo Getúlio, “acalmar” o espírito do chiru, que não pode sequer ser retirado de um lugar para outro sem que se peça licença. A casa também servia para encontros de jovens indígenas e até pela Secretaria de Saúde Indígena. Era a única da aldeia.
— É como matar nossa vida, nosso costume. Os caraí (não indígenas) sabem que não é bom para nós — diz Juca.
O antropólogo indígena Tonico Benites, que intermediou o contato do GLOBO com os rezadores Ricardo e Martina (eles não falam português), acredita que os incêndios têm duas causas prováveis. Uma é a intolerância religiosa, principalmente nas reservas criadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio. Ela costuma ser fomentada por igrejas pentecostais, que atribuem aos rezadores atos de feitiçaria e ligação com “o Satanás”.
Reservas como a de Dourados, a mais populosa do Mato Grosso do Sul, têm mais de 100 igrejas evangélicas. Boa parte dos pastores são indígenas.
Outra causa apontada é o fato de que, nos locais onde há disputa por terras, as casas de reza se tornam alvo por serem as maiores em tamanho e servirem para reunir grandes grupos. Os rezadores também são perseguidos porque têm a responsabilidade de recuperar pessoas, como usuários de drogas e ex-presidiários.
Três homens foram detidos por atear fogo na casa de reza em Rancho Jacaré. Soltos, retornaram à terra indígena, onde também moram. O trio só falará na Justiça.
O Ministério Público Federal informou que os procuradores só atuam em ações coletivas. No caso das casas de reza, o entendimento tem sido de que o crime é apenas contra o rezador. O Ministério Público estadual não retornou o contato do Globo.
O professor Gustavo Soldati Reis, doutor em ciências da religião da Universidade do Estado do Pará, diz que os incêndios atacam muito mais que crenças.
— A casa de reza não é um mero templo, no sentido dado por outras religiões. É uma casa de educação, transmissão de conhecimento, tradição e aprofundamento das relações sociais. É onde são tomadas as decisões políticas. É um local simbólico — afirma Reis, avaliando que os ataques têm relação com o momento político do país, e o aumento da presença de missionários evangélicos em terras indígenas.
— O que aumentou foi a presença de um modelo dogmático e fundamentalista. Na pandemia, tivemos pastores orientando indígenas a não se vacinarem — diz.
O MS está entre os três estados que registram mais violência contra indígenas nos últimos anos. Em 2020, foi o terceiro com mais assassinatos (34 de 182 casos) e o segundo com maior número de suicídios (28). Dos 115 territórios indígenas reivindicados no estado, 85 não têm qualquer providência em curso. As terras indígenas declaradas e homologadas são 13 — as demais estão em fases intermediárias no processo de demarcação.