'40% dos casos de Alzheimer podem ser evitados com os hábitos de vida', diz neurocirugião
Sergio Ferreira, da UFRJ, fala em entrevista ao Globo das principais novidades sobre a o problema que acomete 1,8 milhão de brasileiros
Após décadas de frustração, a ciência médica começa a colher os primeiros avanços reais contra a doença de Alzheimer. O medicamento Leqembi, recém-aprovado nos EUA, é um deles, mas não o único. Muitos outros serão apresentados em Amsterdã, a partir de domingo, na Conferência da Associação Internacional de Alzheimer (AAIC, na sigla em inglês), o maior e mais importante congresso sobre doença de Alzheimer e outras demências, com 5.500 trabalhos inscritos e mais de 8.500 participantes, presencial e remotamente.
Coordenador científico da AAIC, o neurocientista Sérgio Ferreira, professor titular dos Institutos de Biofísica e de Bioquímica Médica da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Ciências, traça um cenário sobre o futuro do combate da doença.
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Qual a dimensão do Alzheimer no Brasil?
Temos 1,8 milhão de brasileiros com a doença e, no ritmo em que nossa população tem envelhecido, em alguns anos, serão de 4 milhões a 5 milhões os afetados.
E no mundo?
Há 50 milhões de casos e esse número praticamente triplicará até 2050. O aumento não será linear. A Europa já está perto do teto e tem investido em prevenção. Veremos boa parte desse crescimento de casos na América Latina, em países como o Brasil.
O Alzheimer até agora não tem cura, mas tem crescido os dados positivos sobre prevenção. Até que medida essa doença pode ser evitada?
Sabemos que apenas 2% dos casos têm causa hereditária. Nos demais, o fator genético não é determinante. E fatores associados à qualidade de vida que aumentam enormemente o risco, como consumo de açúcar e gordura, tabagismo, a falta de atividade física e a baixa escolaridade. Estimamos que nada menos do que 40% dos casos de Alzheimer não hereditários poderiam ser evitados com mudanças no estilo de vida e medidas médicas, como o controle da obesidade, do diabetes e da depressão.
O senhor costuma dizer que há um componente social muito importante. Por quê?
Sim. Existe desigualdade no risco. Porque muitas pessoas não têm acesso à atividade física, por exemplo. Como quem mora numa comunidade afetada pela violência pode pensar em caminhar? Que tempo tem para se exercitar quem passa horas por dia no transporte indo e vindo do trabalho? O custo da comida de qualidade é outro fator. O Brasil está ficando velho e precisa se mobilizar.
O que realmente se pode esperar de uma droga como a leqembi?
Ela não vai curar nem impedir que a doença se manifeste. Mas pode reduzir o declínio cognitivo de forma que nenhum outro remédio até agora conseguiu. E isso é muito.
Por quê?
Os primeiros medicamentos contra o Alzheimer, os inibidores de acetilcolinesterase, ainda hoje em uso, surgiram nos anos 90. Eles atenuam um pouco o declínio cognitivo, mas não interrompem o curso da doença nem funcionam em metade dos pacientes. A classe seguinte, a da memantina, deu resultados melhores, mas longe de serem satisfatórios. Nos últimos 20 anos se tentou uma série de coisas e nada parecia dar bons resultados. Uma outra droga, o aducanumab, foi lançada nos EUA em 2022, mas foi resultado de muita pressão sobre a Administração de Drogas e Alimentos (FDA). O painel científico havia votado contra. Agora as coisas começam a melhorar, a ter mais êxito e o leqembi faz parte disso.
Qual a diferença?
O lecanemab (leqembi é o nome comercial) é um anticorpo que, como outras drogas ataca a proteína beta-amiloide, que se acumula e forma placas no cérebro dos doentes de Alzheimer. Os demais anticorpos até agora se grudavam nas placas. As placas são como lixões, não adianta muito atacá-las. O lecanemab atua sobre as formas solúveis de beta-amiloide, aquelas que estão livres, em circulação no cérebro. Com isso, pode impedir que a beta-amiloide prejudique as conexões cerebrais e, dessa forma, o declínio cognitivo.
Quando deve chegar ao Brasil?
Não deve demorar, mas são necessários testes clínicos aqui. É uma droga melhor que as demais aprovadas até agora, mas ainda não é a solução.
Como os anticorpos poderiam melhorar?
Um dos problemas é fazê-los chegar ao cérebro. Uma forma é injetá-los na circulação sanguínea, mas só uma pequena parte consegue vencer a barreira cranioencefálica e de fato chegar ao cérebro. Outra, muito invasiva, é injetar direto na cabeça. O meu grupo de pesquisa investiga formas mais eficientes e em animais tivemos bons resultados.
Que forma é essa?
É ensinar os neurônios a produzir o próprio remédio. Fazemos isso colocando a sequência genética do anticorpo num vírus inofensivo, no caso um adenoassociado. O vírus atravessa a barreira e infecta os neurônios, inoculando neles a receita para fazer o anticorpo. Em animais, os resultados são bons. Temos uma patente nos EUA. Mas precisamos de um parceiro da indústria para levar os testes adiante.
Qual a perspectiva para o Alzheimer?
Ele não será curado, mas poderá ser mantida sob controle não com um medicamento, mas com uma combinação de drogas.
Por quê?
Porque é uma doença altamente complexa, que depende de várias fatores e um só medicamento não atenderá a todos. O ideal seria uma combinação de drogas que removessem a placas e outras que prevenissem novos estragos. Sabemos que outras classes de remédios podem ser úteis.
Quais?
Um exemplo promissor são os agonistas de GLP-1, como Ozempic. Eles atuam sobre processos metabólicos associados ao mal de Alzheimer. Mas são remédios que precisam ser tomados para o resto da vida. E há outros hormônios promissores. A ocitocina, mais conhecida como o hormônio do amor e também um indutor do parto. Ela é produzida pelo hipotálamo e tem um papel protetor sobre a memória. Realizamos testes de spray nasal de ocitocina em modelos animais de Alzheimer e os resultados foram bons. Os camundongos recuperaram a memória. É animador pensar que uma bomba nasal simples pode combater a perda de memória. Há muitas coisas interessantes saindo.
Teremos novidades em breve?
Sim. Acreditamos que mais uma droga deve receber autorização nos EUA. É outro anticorpo, chamado donanemab, que atua de forma semelhante ao lecanemab.
O senhor é o primeiro cientista fora do eixo EUA-Europa a coordenar o comitê científico da AAIC, o que isso representa?
Mostra o crescimento e a força da ciência brasileira, apesar de todas as dificuldades. Com a possibilidade de participação remota, também conseguimos que estudantes e jovens pesquisadores de países em desenvolvimento possam se inscrever gratuitamente e participar online. Isso faz muita diferença.
O senhor se considera otimista?
Sim. Diria que voltei a ser otimista. No início dos anos 2000 estava muito otimista. Mas tivemos anos de sucessivos fracassos em todo o mundo, nada parecia funcionar. Agora as coisas mudaram. Mas precisamos mais do que drogas. Também são necessárias políticas públicas para a prevenção.