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SAÚDE

75% dos antibióticos vendidos no mundo são usados em animais; excesso traz riscos à saúde humana

Estudo mostra que 80% dos remédios usados em aves, porcos e bois não são para tratar doenças, mas para profilaxia e induzir crescimento

Condições ambientais ruins e espaços muito apertados aumentam o estresse dos animais e facilitam proliferação de doenças, exigindo uso de antibióticos de forma profiláticaCondições ambientais ruins e espaços muito apertados aumentam o estresse dos animais e facilitam proliferação de doenças, exigindo uso de antibióticos de forma profilática - Foto: Proteção Animal Mundial

Há mais de 10 anos, a venda de antibióticos no Brasil é feita com retenção de receita. O controle serve para impedir o uso indevido, que resulta no surgimento de cepas de bactérias mais resistentes e leva os antibióticos a perderem eficácia.

Um estudo da Proteção Animal Mundial, em parceria com a Universidade de Bolonha, aponta os holofotes para outra direção: cerca de 75% dos antibióticos vendidos no planeta são destinados a animais. E 80% dos ministrados em fazendas industriais, para alimentação humana, não são para tratar infecções.

Na criação intensiva, os medicamentos servem para acelerar o crescimento dos animais e como profilaxia de doenças que eles sequer contraíram. Feito entre 2018 e 2020 com base em dados de 30 países e da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o estudo mapeou o uso de antibióticos na produção de aves, suínos, bois e até peixes.

"É um resultado alarmante. O principal uso é para aumentar a produtividade, não para tratar animais doentes", afirma Karina Ishida, coordenadora de Campanhas de Sistemas Alimentares da Proteção Animal Mundial.

Ricardo Abramovay, professor titular da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Faculdade de Saúde Pública da USP, afirma que o uso indiscriminado de antibióticos mascara um quadro crítico de estresse animal e a consequente fragilidade dos bichos.

Criados em espaços exíguos, aglomerados e muitas vezes sem ver a luz do dia, eles vivem com alto grau de estresse crônico. O resultado é a queda da imunidade, que os torna mais suscetíveis a infecções, como doenças respiratórias e diarreias. Para evitar que adoeçam e o problema se espalhe pelo plantel, o antibiótico é administrado preventivamente.

Como indutores de crescimento, os antibióticos são usados em doses subterapêuticas na ração. Eles inibem o crescimento de bactérias intestinais que produzam substâncias tóxicas e prejudicam a absorção de nutrientes, o que facilita o ganho de peso.

A resistência das bactérias a antibióticos se desenvolve no meio ambiente. Fezes de animais contaminam solo, cursos d’água e os excrementos são usados como adubo, alcançando os vegetais de consumo humano.

"Se não houver uma profunda reversão no uso de antimicrobianos teremos em 2050 mais mortes por infecções causadas por bactérias do que por câncer, por exemplo. É como voltar à idade média. Temos equipamentos e medicina sofisticada, mas se o paciente for infectado e o antibiótico não resolver ele vai morrer", diz Evaldo Stanislau, infectologista do Hospital das Clínicas da USP e professor da Inspirali São Judas.

O conceito de saúde única — que interliga animais, humanos e ambiente — precisa ser conhecido e enfrentado. Em 2019, segundo estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), 1,3 milhão de pessoas morreram no mundo de causas atribuíveis à resistência antimicrobiana.

Em 2017 a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma lista de 12 famílias de bactérias que acometem seres humanos e necessitavam urgentemente de novos antibióticos para serem combatidas, por terem se tornado resistentes.

A produção animal é uma atividade vistosa no agronegócio brasileiro. No país, como os bois não são confinados, o uso excessivo de antibióticos é relacionado principalmente à produção de aves e suínos. Pesquisa feita em 2017 por Maurício Dutra, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, em 25 fazendas de produção intensiva de suínos mostrou concentrações no quilo de carne de porco que variavam de 5,4 mg a 586 mg, o que mostra a disparidade no uso pelos produtores. A média, de 358 mg, ficou bem acima da mundial, de 172 mg.

Manejo cruel
Abramovay cita como exemplo os frangos que foram geneticamente modificados no Brasil para crescer mais em menos tempo. Em 1957 as aves tinham um quarto da massa corporal que têm hoje, com mais peito e coxa. O ritmo de crescimento aumentou três vezes. O tempo até o abate caiu de quatro meses para 42 dias. Mas a estrutura óssea não acompanhou. Muitas não conseguem suportar o próprio peso e um terço delas passa os 20% finais de vida com dores e dificuldade de se manter em pé. O coração também não segue o ritmo. Pelo menos 5% morrem antes do abate, diz o pesquisador.

"O frango não consegue sequer abrir as asas. O espaço de cada um não chega ao tamanho de uma folha de papel A4", diz Abramovay.

O adensamento e o estresse levam ao uso de antibióticos para evitar doenças.

A vida dos suínos não é de melhor sorte. Matrizes são colocadas em minúsculas celas para parir, sem conseguir dar uma volta em torno de si mesma. O desmame dos filhotes é precoce, o que deixa o sistema imunológicos mais fraco. E eles passam a receber antibióticos.

"São necessárias condições ambientais e de manejo melhores para que os animais não tenham imunossupressão e não precisem usar antibiótico de forma rotineira", diz a veterinária Paola Rueda, gerente de ESG e Bem-estar Animal na Grupo Santa Rosa.

Segundo Paola, o uso excessivo de antibióticos faz parte das discussões do setor, mas as empresas que exportam para países mais exigentes é que se adequam mais rapidamente aos métodos de bem-estar animal.

Em janeiro de 2022 entrou em vigor na União Europeia a proibição do uso rotineiro de rações contendo antibióticos. Apenas animais doentes podem ser medicados. O uso como promotor de crescimento estava proibido desde 2006.

No Brasil, o Ministério da Agricultura determinou em 2020 o fim das gaiolas de gestação para suínos a partir de 2045 — um quarto de século entre decisão e prática.

Em junho passado a Secretaria de Defesa Agropecuária determinou que a compra de antibióticos passe a ser feita apenas com receita veterinária. Criou ainda um cadastro de produtores de ração que incorporam antibióticos e passou a exigir plano de boas práticas.

O veterinário e pesquisador Rafael Almeida, doutor pela Fiocruz, afirma que a portaria avança, mas deixa lacunas. A prescrição do veterinário é exigida apenas de fabricantes de ração. Não alcança casas agropecuárias e petshops. Ficam fora do controle antibióticos diluídos em água para dar aos animais. Também não é exigida retenção de receitas, como ocorre com humanos.

— Não temos controle de quanto é usado de antibióticos e da incidência de doenças bacterianas nos animais. Portanto, não sabemos se as ações são efetivas — explica.

Para Abramovay, o uso de antibióticos nas fazendas de produção só será reduzido com adoção de práticas de bem-estar animal e redução de adensamento.

Insumos
A Associação Brasileira de Proteína Animal, que representa os setores avícola e de suíno, afirmou, em nota da Aliança para o Uso Responsável de Antimicrobianos, da qual faz parte, que trabalha com o conceito de saúde única da OMS e que o uso de antibióticos proporciona bem-estar animal, ao reduzir a ocorrência de doenças, e objetiva aproveitar de forma eficiente os insumos nutritivos.

Diz que cumpre regulamentos do Brasil, de 160 países importadores e que lotes de produtos são testados pelo Programa Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes.

“O abandono abrupto do uso de tecnologias na produção animal e de alimentos seguros poderá significar em perdas severas de produtividade, implicando em aumento de custos de produção.”

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