RECOMEÇOS

A dor jamais abafará o amor: Lar Paulo de Tarso comemora primeiro Dia das Crianças após incêndio

Espaço no Ipsep que funciona como sede do Lar Paulo de Tarso ainda está sendo restaurado; crianças estão temporariamente no bairro do Hipódromo

Crianças chegam até o Lar Paulo de Tarso através da Vara da Criança e do Adolescente ou ainda do Conselho TutelarCrianças chegam até o Lar Paulo de Tarso através da Vara da Criança e do Adolescente ou ainda do Conselho Tutelar - Foto: Ricardo Fernandes/Folha de Pernambuco

A dor jamais abafará o amor. Essa frase, repetida sempre que possível pelo diretor responsável pelo Lar Paulo de Tarso, Gezsler Carlos West, ganhou ainda mais vida para o Dia das Crianças deste ano, comemorado na última quinta-feira (12), por ter sido o primeiro celebrado após a tragédia que aconteceu na sede do espaço, no bairro do Ipsep, Zona Sul do Recife.

Na madrugada do dia 14 de abril deste ano, o local foi palco de um incêndio provocado por causa de uma pane elétrica em um dos ventiladores. Três crianças e uma funcionária morreram por conta da inalação da fumaça tóxica vinda das chamas.

As 10 crianças e a funcionária que sobreviveram precisaram de acompanhamento médico e internações nos dias seguintes. Alguns, inclusive, foram encaminhados em estado grave à Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). A garota que ficou mais tempo internada, chegando até a ser entubada, passou 50 dias sob cuidados médicos, e acabou adotada por uma nova família no último dia 22, uma sexta-feira de esperança.

Com o recebimento das altas médicas, foram entregues também novos projetos e sonhos, todos escritos pela esperança. A mesma que garantiu o pleno funcionamento do Lar Paulo de Tarso nos dias seguintes ao acontecimento. A mesma que envolve o coração dos voluntários e parceiros da instituição para que a sede, no bairro do Ipsep, volte a funcionar como antes. Por lá, as obras da reforma devem se estender até o começo do próximo mês.

Por enquanto, o lar temporário das crianças está sendo a Casa de Acolhimento Margareth Silva, no bairro do Hipódromo, também na capital pernambucana. Por coincidência do destino ou pela esperança que envolve essa história, esse outro endereço foi inaugurado pela Prefeitura do Recife na mesma época em que o incêndio ocorreu. O nome, inclusive, é uma forma de homenagear a memória da cuidadora que morreu no incidente ao tentar salvar as crianças. Ela tinha 62 anos.

Até reforma no espaço do Ipsep, crianças estão vivendo em casa no bairro do Hipódromo | Foto: Ricardo Fernandes/Folha de Pernambuco

O quadro atual de funcionários é formado por treze cuidadoras, uma assistente social, uma pedagoga e uma psicóloga. Além de um time de voluntários que trabalham em prol do bem-estar das crianças.

Entre as principais “regras” da casa uma se destaca: sentir-se à vontade. Para isso, o setor administrativo do Lar Paulo de Tarso fica localizado no primeiro andar da casa no Hipódromo, longe do alcance dos olhos dos pequenos.

Até reforma no espaço do Ipsep, crianças estão vivendo em casa no bairro do Hipódromo | Foto: Ricardo Fernandes/Folha de Pernambuco

O contato dos profissionais com as crianças também acontece de modo natural, sem a “distância” imposta pelo uso de fardamentos ou crachás - com exceção do porteiro da residência.

“A casa não tem identificação. Na casa do amigo dele tem escrito algo? As cuidadoras não usam farda. Nunca vi minha mãe com farda. A palavra ‘abrigo’ cria um estereótipo. Nossas crianças não são de abrigo. Elas moram num lar e são nossos filhos do coração. Não é algo somente falado, eles sentem esse carinho. Nosso tratamento aqui é igual ao que damos aos nossos filhos biológicos. Assumimos a guarda provisória e tudo fica com a gente, como escola e hospital. A criança mora aqui até o juiz decidir o destino dela”, explica Gezsler Carlos West.

"Nosso tratamento aqui é igual ao que damos aos nossos filhos biológicos", detalha o diretor Gezsler West | Foto: Ricardo Fernandes/Folha de Pernambuco

As crianças chegam ao Lar por encaminhamento da Vara da Criança e do Adolescente ou do Conselho Tutelar, pelos mais tristes e variados motivos. “Podem ficar semanas, meses ou anos aqui. São crianças passando por seríssimas situações no seu núcleo. Pode ser abuso sexual, pais envolvidos em drogas ou com transtornos mentais, violência física ou abandono de incapaz”, lista o diretor.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), publicado pela primeira vez em 1990 e tido como marco legal e regulatório dos direitos humanos desse público, dois caminhos antecedem a adoção. 

“A primeira opção, em um trabalho conjunto e intenso, vai ser analisar se há possibilidade de a criança retornar para onde estava. Às vezes, é uma mãe viciada em crack e que tenta seguir o tratamento, até mesmo para não quebrar esse vínculo com o filho. Só que nem sempre é possível. Também há a possibilidade da família extensa, que é a chance de ir morar com avós e tios, ou outros parentes. Mas, às vezes, também não tem essa possibilidade. Quem determina é o juiz. Se essas duas opções não forem possíveis, a criança é encaminhada para o CNA (Cadastro Nacional de Adoção)”, explica o diretor.

Há 18 anos fazendo parte da vida do Lar Paulo de Tarso, cuja primeira reunião para fundação aconteceu em novembro de 1990, no bairro do Ibura, o diretor compartilha com orgulho o número exato de vidas que foram e estão sendo refeitas sob seu olhar e administração.  

“Nosso modelo educacional é integral, que contempla uma visão biopsicossocial e também espiritual. Contando com as crianças que estão conosco agora, já moraram nesses 18 anos, 381. Quando batem aqui na porta, não pergunto raça, religião, orientação sexual ou afinidade política, só pergunto uma coisa: quer fazer o bem?”.

Até reforma no espaço do Ipsep, crianças estão vivendo em casa no bairro do Hipódromo | Foto: Ricardo Fernandes/Folha de Pernambuco

Quando essa resposta for positiva, ele então dará início a uma conta matemática que confronta o que é ensinado nas salas de aulas há anos.

“Um mais um é sempre mais que dois.”

Na madrugada do dia 14 de abril deste ano, quando o incêndio aconteceu, Gezsler Carlos, pela primeira vez, disse em voz alta que "a dor jamais abafará o amor", frase que vem fazendo parte do dia a dia de reconstrução da instituição.

Dos sobreviventes do incêndio, permanecem no Lar a cuidadora e seis crianças.

Até reforma no espaço do Ipsep, crianças estão vivendo em casa no bairro do Hipódromo | Foto: Ricardo Fernandes/Folha de Pernambuco

Confiando no espaço de tempo que se estende até então, a expectativa para voltar para casa é grande e vista como uma maneira de recomeçar, até mesmo por quem estava resistente com a ideia de voltar ao bairro inicialmente.

“Ali eu disse a primeira vez que ‘a dor jamais abafará o amor’. A dor foi a gota profunda, mas a nossa fé em Deus foi inabalável. Pelo menos, aparentemente a recuperação das crianças está acima da minha expectativa. Temos seis (crianças) daquela época e a tendência é ir diminuindo. As cuidadoras, logo no início, estavam perguntando se iria ser no mesmo lugar, mas agora todas já querem voltar. Estamos deslocados da nossa logística. Moro do outro lado da cidade. O tempo, além de ser um grande professor, é um grande psicólogo. Noite após noite, muitas daquelas pessoas que não queriam, já querem. A casa de lá é própria e agora vamos ressignificar”, projeta com doses de esperança.

"O tempo, além de ser um grande professor, é um grande psicólogo", afirma o diretor | Foto: Ricardo Fernandes/Folha de Pernambuco

O cronograma de obras tem previsão de ser finalizado no início do próximo mês. As mudanças na estrutura acontecem de forma ampla, com o intuito de que apenas o endereço seja o mesmo. “Estamos mudando os cômodos e as cerâmicas, está tudo diferente. Mudamos as telhas e a fachada. Só está mesmo o local de igual, mas a casa mudou quase que por completo”, garante.

A repaginada na instituição, bem como a continuidade do atendimento aos mais vulneráveis, só foi possível através de doações, tanto de forma financeira quanto material. Em apenas uma semana a partir do episódio, o suficiente havia sido coletado.

“Não foi criada nenhuma conta (bancária) específica para isso, mas as pessoas começaram a doar pela que já usávamos. Começou a chegar cama, fogão, tudo… recebemos apoio de voluntários e o que não conseguimos através de doação material, pagamos com o dinheiro que ganhamos de doações. Foi uma rede de solidariedade enorme”, afirma.

“Gratidão, a sociedade por tudo e por tanto. Amor, porque a dor jamais abafará o amor. E fé inabalável em Deus”, cita emocionado.

Até reforma no espaço do Ipsep, crianças estão vivendo em casa no bairro do Hipódromo | Foto: Ricardo Fernandes/Folha de Pernambuco

Segundo a Prefeitura do Recife, foi disponibilizado um projeto técnico e material para a reconstrução do Lar Paulo de Tarso. Além disso, ela antecipou recursos na ordem de R$ 40 mil relativos ao Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, tendo também liberado R$ 35 mil da quarta parcela, de um total de seis, referente ao Chamamento Público para acolhimento de crianças vítimas de violência doméstica da Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Política sobre Drogas.

Única do Nordeste na Unesco

Além da volta para casa, outro motivo que as pessoas que fazem o Lar Paulo de Tarso têm para comemorar nessa história que ganha um novo e esperançoso capítulo, é o reconhecimento do trabalho pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), por meio de uma seleção de cases de sucesso entre a temática da Primeira Infância.

No Nordeste do Brasil, a instituição é a única contemplada pelo resultado do levantamento da Organização, iniciado com mais de cinco mil fundações e de forma sigilosa.

“Há dois anos, a Unesco começou um trabalho no Brasil que ninguém sabia. Foram no banco de dados e selecionaram 5.713 fundações. Eles passaram por nove filtros, onde sobraram 297 inscrições. Depois, com outros filtros, sobraram 30. Eles queriam cases de sucesso e então fizeram contato com as 30, que só assim souberam. Tivemos reuniões online com eles, nos foram pedidos vários documentos. Eles queriam selecionar seis no Brasil todo e o Lar Paulo de Tarso está lá agora”, comemora Gezsler Carlos.

Ele decorou um ponto específico no relatório da Unesco, onde o Lar Paulo de Tarso era descrito. “Tem uma coisa que nos marcou muito no relatório, dizendo que priorizamos a espiritualidade do ser, que é o amor ao próximo. Isso nos tocou bastante, pois esse é um ponto vital para nós”, afirma satisfeito.

E da mesma forma que acredita que um mais um é sempre mais que dois, fez questão de deixar outro ensinamento.

“Reconhecemos que não somos melhores que ninguém. Essa é uma premiação para todas as instituições que atuam pela criança e pelo adolescente em situação de vulnerabilidade social. O que importa é que a sociedade se sensibilize para abraçar essas crianças. Queremos que essa premiação sirva de força para o bem”, finaliza.

Crianças ontem, cuidadoras hoje

A ligação com o Lar Paulo de Tarso, para a maioria das crianças, não se encerra quando os muros são ultrapassados de forma definitiva e o caminho para casa é modificado. Dois exemplos disso acontecem com as irmãs Amanda Maria Leôncio e Raphaela Viana, que no passado estavam entre as crianças disponíveis para adoção e hoje trabalham no espaço como cuidadoras.

Amanda, durante o turno da noite e Raphaela, pela manhã. Elas, inclusive, fazem questão de se encontrar nas trocas de horário.

As irmãs Amanda Maria Leôncio e Raphaela Viana retornaram ao Lar como cuidadoras | Foto: Clarice Melo/Folha de Pernambuco

Amanda chegou ao Lar Paulo de Tarso ao lado de mais três irmãos, no ano de 2002, aos sete anos de idade. Ela é a mais velha.

Foi lá que aprendeu a cultivar três hábitos da sua vida: ler, escrever e orar.

“Eu e os meus três irmãos éramos analfabetos, não sabíamos ler nem escrever. Ficamos na casa por dois anos e meio, e quando fui desligada, saí sabendo ler e escrever e também a orar o Pai-Nosso”, diz.

Mais tarde, o retorno ao Lar se deu como uma oportunidade de emprego, mas a rede de apoio chegou desde o momento necessário.

“Eu estava desempregada e o meu esposo também, e ainda estávamos com um filho de seis meses. Expliquei a minha situação, no momento não tinha vaga de emprego, mas me ajudaram com cestas básicas e assim que surgiu uma vaga, em 2019, me contrataram”, rememora. Atualmente, a criança, que se chama Jackson, tem seis anos.

Já o retorno de Raphaela, hoje com 26 anos, começa a partir da realização de um sonho: reencontrar a família. Ela foi adotada por uma família, enquanto os outros três irmãos seguiram com outra.

Raphaela usou a irmã como inspiração para retornar ao espaço em uma nova função | Foto: Clarice Melo/Folha de Pernambuco

“Senti falta deles e quis reencontrá-los. Esse era o meu sonho. Fui adotada por uma família e acabei separada dos meus irmãos. Aos 19 anos, decidi voltar para Pernambuco e reencontrei eles. Eu estava morando em Brasília, achei minha irmã por uma rede social e ela disse que eu poderia morar com ela”, diz.

Os anos passaram e Raphaela ampliou sua família. Casou e teve dois filhos: Abraão Lucas, hoje com cinco anos, e Adriel Luiz, com dois.

Mais anos se passaram e ela e o marido optaram pelo divórcio. Desempregada logo depois, Raphaela seguiu os passos da irmã mais velha, mas já conhecia bem para onde estava indo.

"Minha irmã já tinha vínculo com o Lar e as pessoas ficavam perguntando por mim. Souberam que eu precisava de um trabalho e me deram oportunidade. Fiquei muito feliz. Me sinto bem e do jeito que eu fui tratada, com carinho e amor lá, trato as crianças. Eu entendo como elas se sentem, porque passei pelo mesmo. Quando eu estou lá, é como se eu sentisse o que cada um está sentindo. O Lar Paulo de Tarso é um lugar especial”, define.

 

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