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ENTREVISTA

"A novidade é a escala dos massacres contra a população civil", diz embaixador do Brasil na Síria

André Santos, que chefia a embaixada brasileira em Damasco, afirma que 'é possível concluir que houve um componente sectário-religioso forte na seleção das vítimas' da violência que tomou conta da Síria nos últimos dias

Embaixador do Brasil na Síria, André Santos, em visita à cidade síria de PalmiraEmbaixador do Brasil na Síria, André Santos, em visita à cidade síria de Palmira - Foto: Arquivo pessoal

A Síria vive uma nova escalada de violência, d esencadeada pelos confrontos entre grupos rebeldes ligados ao regime de Bashar-al-Assad, derrubado em 8 de dezembro de 2024, e o novo governo interino do país. Nesta nova escalada, confirmou ao Globo o embaixador do Brasil em Damasco, André Santos, está ocorrendo “um massacre a civis”, em sua grande maioria alauítas, minoria religiosa a qual pertence o clã Assad.

 

"É possível concluir que houve um componente sectário-religioso forte na seleção das vítimas, seja pelos vilarejos atacados (de concentração alauíta), seja pelos diversos vídeos que circularam (e ainda circulam) nas redes sociais, onde as vítimas são identificadas como alauítas e passam por humilhações e torturas, antes de serem assassinadas”, contou o embaixador. "Deve ser lembrado que execuções sumárias de alauítas e de integrantes do governo anterior vêm ocorrendo desde dezembro passado (fato devidamente documentado nas redes sociais). A grande diferença nos trágicos eventos da semana passada foi a escala dos massacres perpetrados contra a população civil”.

A seguir, leia os principais trechos da entrevista:

O que está por trás dos massacres ocorridos nos últimos dias, na Síria? Pode-se falar em perseguição religiosa contra comunidades alauítas?
Em 6 de março, ex-integrantes das forças armadas sírias atacaram vários pontos de controle em diferentes localidades da província de Latakia, matando dezenas de homens das forças de segurança do novo governo. Em represália, grupos armados que compõem as forças de segurança deram início, no mesmo dia, a massacres de civis (quase que exclusivamente alauítas) não só em Latakia, mas também nas províncias de Tartous e Homs. Os massacres, que vitimaram também mulheres e crianças, duraram três dias (06, 07 e 08 de março) e o número de vítimas fatais está estimado em mais de mil pessoas, de acordo com algumas fontes. Ao longo desses três dias, foram mortos dezenas de combatentes do antigo exército sírio, mas o maior número de vítimas é composto por civis alauítas. É possível concluir que houve, sim, um componente sectário-religioso forte na seleção das vítimas, seja pelos vilarejos atacados (de concentração alauíta), seja pelos diversos vídeos que circularam (e ainda circulam) nas redes sociais, onde as vítimas são identificadas como alauítas e passam por humilhações e torturas, antes de serem assassinadas.

Qual é a dimensão da ameaça das forças pró-Assad contra o governo atual?
Nas primeiras horas dos ataques na última quinta-feira, a minha estimativa era de que as ações haviam sido de natureza “oportunista”, isto é, uma vez identificados pontos fracos na estrutura de segurança do governo atual na província de Latakia, esses alvos foram atacados com um razoável grau de sucesso por ex-integrantes das forças armadas. Mais tarde, quando os combates já duravam horas, reconsiderei minha opinião inicial, uma vez que o poder de fogo dos atacantes, ao largo de várias horas, demonstrava não só planejamento meticuloso, mas capacidade logística significativa. De qualquer modo, as forças de segurança do atual governo mostraram-se capaz de recuperar o controle da situação e forçar os atacantes a baterem em retirada para a zona montanhosa da região. Sozinhos, os ex-integrantes das forças armadas sírias não têm capacidade de ameaçar  o governo atual. Não pode ser descartada, contudo, a possibilidade (por ora remota) de que outras forças não alinhadas ao governo atual (como os drusos no sul, as tribos árabes no centro, e os curdos no norte/nordeste), se unificadas, poderiam sim ameaçar e mesmo derrotar o poder central atual.

Onde está concentrado o conflito?
Os massacres ocorreram principalmente nas províncias de Latakia e Tartous. Houve matanças também na província de Homs. Deve ser lembrado que execuções sumárias de alauítas e de integrantes do governo anterior vêm ocorrendo desde dezembro passado (fato devidamente documentado nas redes sociais). A grande diferença nos trágicos eventos da semana passada foi a escala dos massacres perpetrados contra a população civil.

Qual é a situação em Damasco?
A situação em Damasco é de tensão. Não houve protestos, não houve provocações ou atos de violência e/ou intimidação. As escolas estão funcionando normalmente, o comércio abriu suas lojas e o trânsito na rodovia que liga a capital síria a Beirute é normal (ao contrário das rodovias que conectam Damasco com o litoral, que permanecem fechadas).

Quais seriam as chances das embaixadas terem de deixar Damasco novamente?
Caso as forças de segurança do governo atual consolidem o controle da situação no litoral (o que parece ser o caso), não antevejo qualquer razão para que as embaixadas se retirem da Síria neste momento (com ênfase no termo “neste momento”). Recordo, contudo, que três forças estrangeiras ( Turquia, Israel e EUA) ocupam ilegalmente partes do território sírio, e que os dois primeiros têm avançado sobre novas faixas da Síria, em clara violação da Carta das Nações Unidas, do direito internacional e da soberania síria. Recordo, outrossim, que o grupo armado formado por militantes curdos (“Forças Democráticas Sírias” – SDF), e que é apoiado (até o momento) pelas forças norte-americanas, se encontra em pleno conflito com o exército turco e sua milícia (“Exército Nacional Sírio”). Embora a deposição de Bashar Al-Assad tenha sido um duro golpe contra as atividades do chamado “Eixo da Resistência” ( Irã, Iraque, Síria e Líbano/ Hezbollah) neste país, ainda é cedo para descartar a capacidade de influência desses atores no instável cenário sírio.

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