Agência da ONU quer energia nuclear contra Covid, novas pandemias e mudança climática
Dar uso diverso à energia nuclear é uma das metas do diretor-geral desta agência da ONU (Organização das Nações Unidas), o argentino Rafael Grossi
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No centro de negociações complexas como a do programa nuclear iraniano, a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) quer ampliar sua atuação no incentivo ao uso de tecnologias do setor para combater a Covid-19, novas pandemias e a mudança climática.
Dar uso diverso à energia nuclear é uma das metas do diretor-geral desta agência da ONU (Organização das Nações Unidas), o argentino Rafael Grossi, no cargo desde dezembro de 2019.
A partir de projetos que já existiam, ele criou a iniciativa Zodiac (acrônimo inglês para Ação Integrada para Doenças Zoonóticas) em junho do ano passado, quando a pandemia da Covid-19 já devastava o planeta.
Cerca de 300 laboratórios em todo o mundo foram interligados pela AIEA para trabalhar em soluções derivadas de aplicações nucleares em relação à pandemia.
Poucos sabem, mas o teste padrão-ouro para detecção do coronavírus Sars-CoV-2, o RT-PCR, em sua origem utilizava isótopos radioativos no processo de identificação do material genético do vírus –agora emprega marcadores fluorescentes.
"A AIEA era uma ferramenta frequentemente subutilizada. Muitas dessas coisas já eram feitas, em escala menor. Há uma quantidade de desafios crescentes. Não podemos continuar fazendo o que estamos fazendo, são coisas que requerem uma resposta diferente da comunidade internacional", afirmou Grossi à reportagem, no sábado (17) em São Paulo.
Algumas ideias em estudo no Zodiac incluem a irradiação do sangue, prática comum para inativar leucócitos que podem ser rejeitados por receptores de doações, para atacar vírus.
Preconiza também o monitoramento global contra novas pandemias, por uma ampliação do uso de isótopos para identificar viroses animais migrando para comunidades humanas.
Em visita ao Brasil, Grossi visitou o programa de libertação de mosquitos Aedes aegypti machos estéreis em favelas de Recife. Dez milhões desses bichos, irradiados com raios gama na Universidade Federal de Pernambuco, já foram soltos desde o ano passado.
A ideia é simples. O mosquito estéril compete com o macho fértil e copula com fêmeas, que botam ovos inertes. O programa calcula que 60% dos ovos analisados até aqui são inativados, ajudando a reduzir o risco de disseminação do vetor da dengue, chikungunya e zika.
O argentino citou outro caso, o da Moscamed, biofábrica de moscas de frutas e outros bichos também estéreis, aberta em 2005 em Juazeiro (BA). "A técnica de esterilizar insetos não é nova, mas precisamos ajudar a ofertar esses modelos em grande escala para outros países", afirmou.
Em São Paulo, ele visitou o Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), gerido pela Comissão Nacional de Energia Nuclear.
"Podemos reciclar plástico sem usar solventes. O Ipen tem uma ótima experiência, nós estamos trabalhando com isso na Ásia também. A ferramenta já existe e está sendo paga pelo contribuinte brasileiro. A burocracia internacional irrita, ela tem de dar soluções às pessoas."
Grossi afirma que, obviamente, "não somos salvadores do mundo" e defende os projetos conjuntos que tem com a OMS (Organização Mundial da Saúde) e com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura).
Energia nuclear já é central em aplicações médicas cotidianas, de exames a terapias diversas, mas a coordenação de esforços é inédita.
Em relação às mudanças climáticas, Grossi é um advogado do uso da energia nuclear e sabe a resistência que ela sofre –particularmente na Europa, onde os partidos verdes são forças consideráveis em alguns países.
Acidentes como o de Fukushima (2011) e Tchernóbil (1986) ajudaram a aumentar o estigma sobre a matriz, e críticos apontam que ela não é tão limpa porque a produção de seus insumos ao fim também gera pegada de carbono.
Pode ser, mas o fato é que as emissões diretas da produção de energia nuclear são zero, e para Grossi ela deve fazer parte do "mix" energético de qualquer nação, seguindo especificidades. No mundo, hoje, 10% da eletricidade e 4% da energia como um todo têm origem atômica.
Ele cita as cheias na Europa Central como um sinal de alerta renovado do problema à frente.
A proatividade desse argentino de 60 anos atrai algumas críticas de que ele estaria tirando o foco do objeto principal da AIEA, que é monitorar a proliferação nuclear entre seus 173 países afiliados e promover a segurança do uso da matriz.
"Estávamos perdendo tempo, não foco. Somos um cão de guarda muito duro, e seguimos sendo. É o mesmo que dizer que um governo não pode cuidar de educação e segurança ao mesmo tempo", afirmou. "A ambição podia ser muito maior. Nosso papel é inspirar, propor coisas que podem ser feitas."
É uma corrida desigual neste campo. Neste ano, o orçamento operacional da AIEA é de EUR 383 milhões (R$ 2,3 bilhões hoje). Só o programa de modernização de armas nucleares dos Estados Unidos, maior potência do mundo no campo, prevê US$ 57 bilhões (R$ 297 bilhões) anuais, por três décadas.