Além da Covid e varíola: como os países encerraram surtos recentes de outras 6 doenças
Um relatório da organização global de estratégia de saúde "Resolve to Save Lives" documentou seis desastres que não aconteceram
Nos últimos dois anos, as manchetes e as redes sociais foram dominadas por surtos em todo o mundo. Havia a Covid-19, é claro, mas também a mpox (anteriormente conhecida como monkeypox ou varíola dos macacos), a poliomielite e o sarampo. Mas mais uma dúzia de surtos de outras doenças surgiram, ameaçaram se tornar epidemias e foram extintos. Embora possa não parecer, esses casos mostram que o mundo aprendeu alguma coisa sobre como controlar epidemias.
Um relatório da organização global de estratégia de saúde "Resolve to Save Lives" documentou seis desastres que não aconteceram. São eles: vírus Nipah, cólera, raiva, influenza, dengue e ebola. Todos surgiram em países em desenvolvimento, incluindo o Brasil e outros que, como a República Democrática do Congo, têm alguns dos sistemas de saúde mais frágeis do planeta. Mesmo assim, essas doenças puderam ser controladas graças a uma rápida resposta das autoridades de saúde.
Embora a tecnologia de vacina de ponta e o sequenciamento genômico tenham recebido muita atenção na pandemia de Covid-19, as intervenções que ajudaram a prevenir essas seis possíveis epidemias foram totalmente sem glamour: construir a confiança das comunidades no sistema de saúde local.
Treinar a equipe local sobre como relatar uma suspeita de problema de forma eficaz. Garantir que os recursos estejam disponíveis para iniciar uma rápida resposta contratar rastreadores de contato ou vacinar uma aldeia contra a raiva. Aumento da capacidade laboratorial em áreas distantes dos principais centros urbanos. Preparar todos para se moverem rapidamente ao primeiro sinal de potencial calamidade.
— Os surtos não ocorrem devido a uma única falha, eles ocorrem devido a uma série de falhas — disse o médicoTom Frieden, diretor-executivo da Resolve e ex-diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC). — E as epidemias que não acontecem, não acontecem porque há uma série de barreiras que vão impedir que elas aconteçam — completou.
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Ebola, na África Ocidental
Alguns países que enfrentaram terríveis surtos de ebola anteriormente, foram capazes de controlar o aumento de casos nos últimos anos. Quando o ebola varreu o leste da República Democrática do Congo em 2018, foi difícil rastrear os casos.
O médico Billy Yumaine, um funcionário da saúde pública, lembra-se do fluxo constante de pessoas que se deslocavam de um lado para o outro na fronteira com Uganda, enquanto outros escondiam familiares doentes em suas casas porque temiam as autoridades. Demorou pelo menos uma semana para obter os resultados dos testes e as autoridades de saúde tiveram dificuldade em isolar os doentes enquanto esperavam. Demorou dois anos para o país controlar o surto e mais de 2.300 pessoas morreram.
Um desastre semelhante ameaçou a República Democrática do Congo em setembro de 2021. Membros de uma família na província de Kivu do Norte adoeceram com febre, vômito e diarreia, um após o outro. Em seguida, seus vizinhos também ficaram doentes. Mas isso desencadeou uma série de etapas que o país implementou após o surto de 2018. Os pacientes foram testados, os casos foram rapidamente confirmados como um novo surto de ebola e, de imediato, os profissionais de saúde rastrearam 50 contatos das famílias.
Em seguida, eles se espalharam para testar possíveis pacientes nos centros de saúde e examinaram as pessoas nos postos de fronteira movimentados, parando qualquer pessoa com sintomas de febre hemorrágica. Laboratórios locais que foram montados após o surto anterior testaram mais de 1.800 amostras de sangue. Isso fez a diferença: desta vez, o ebola ceifou apenas 11 vidas.
— Essas pessoas morreram, mas mantivemos 11 mortes, enquanto no passado perdemos milhares — disse Yumaine.
Yumaine disse que um passo fundamental que fez a diferença no encerramento do surto de ebola no Congo em 2021 foi ter funcionários de saúde locais, em cada comunidade, treinados na resposta. A presença de laboratórios na região também permitiu diagnosticar a doença em um dia - dois, no máximo - em vez de esperar uma semana ou mais para que as amostras fossem enviadas até a capital.
Em 2021, também houve a detecção de novos casos de ebola na Guiné. Amanda McLelland, que lidera a prevenção de epidemias na Resolve, temeu um desastre. Um surto que começou nesse país em 2014, se espalhou para dois países vizinhos e, dois anos depois, infectou quase 30 mil pessoas e matou 11.325.
Mas desta vez, embora a Guiné já lutasse para responder à Covid, conseguiu conter o surto de ebola em seis meses, com apenas 11 mortes.
— Esse foi um exemplo fantástico de aprender essas lições e investir e construir de forma sustentável na capacidade — disse McLelland.— Deve ser comemorado — acrescentou.
No entanto, o progresso pode ser irregular: um novo surto de ebola está lentamente sendo controlado em Uganda, e as nações vizinhas o observam com preocupação. Frieden disse que ficou desanimado ao ver isso, porque Uganda tem um forte sistema de saúde pública com um histórico de detecção e resposta rápida a surtos.
— Acho que o que estamos vendo é a colheita infeliz da Covid. A pandemia quebrou muitas coisas. Quebrou a resiliência dos profissionais de saúde, a disposição de muitas pessoas de seguir os conselhos de saúde pública, a confiança no sistema de saúde e nas comunidades que existiam antes. O progresso é possível, mas também é frágil — disse Frieden.
Mas Yumaine está cada vez mais confiante de que, mesmo que o ebola se espalhe pela fronteira de Uganda, a República Democrática do Congo poderia responder rapidamente, com sistemas de vigilância que melhoram o tempo todo.
— Estamos encorajados por nossas melhorias. Mas não vamos parar por aí — disse ele.
Vírus Nipah, na Índia
A maioria das pessoas provavelmente não ouviu falar sobre os surtos de ebola relatados acima. Elas também não souberam de um possível surto do vírus mortal Nipah, que uma médica e seus colegas interromperam no sul da Índia, no ano passado.
Chandni Sajeevan, chefe de medicina de emergência do hospital Kozhikode Government Medical College, liderou em 2018 a resposta a um surto de Nipah, um vírus mortal transmitido por morcegos frugívoros. Dezesseis das 18 pessoas infectadas morreram, incluindo uma jovem enfermeira que cuidou das primeiras vítimas.
— Foi algo muito assustador — disse Chandni.
Três anos depois, em 2021, Chandni e sua equipe ficaram aliviadas quando a temporada de reprodução de morcegos passou sem infecções. Mas, em maio, no meio da terrível onda de Covid na Índia, um menino de 12 anos com febre alta foi levado a uma clínica por seus pais. Aquela clínica estava lotada, então ele foi encaminhado para a seguinte, e depois para uma terceira, onde testou negativo para Covid.
Um clínico que estava no local notou que a criança havia desenvolvido encefalite e enviou uma amostra para o laboratório nacional de virologia. Rapidamente, foi confirmado que este era um novo caso do vírus Nipah. A criança poderia ter exposto várias centenas de pessoas, incluindo dezenas de profissionais de saúde.
Logo após o surto de 2018, Chandni e seus colegas e seus colegas implementaram um sistema que rapidamente entrou em ação: centros de isolamento, uso de "trajes lunares", testar qualquer pessoa com febre para Nipah e Covid. A médica realizava briefings diários para abafar os rumores e manter o público atento a pessoas que poderiam estar doentes – e longe de morcegos e seus excrementos, que se espalham pelos coqueirais onde as crianças brincam. Equipes foram enviadas para pegar morcegos para vigilância. Todos os que foram expostos ao menino doente foram colocados em 21 dias de quarentena.
— Todos - motoristas de ambulância, ascensoristas, guardas de segurança - sabiam desta vez sobre o Nipah e como se comportar para não espalhá-lo — disse ela.
E assim o surto foi controlado, deixando apenas um caso confirmado.
Cólera, em Burquina Faso
A cólera é uma doença diarreica altamente infecciosa causada por bactérias em alimentos ou água contaminados. Todos os anos, o mundo vê cerca de 3 milhões de casos e 100.000 mortes pela doença.
Um motorista chegou a Burquina Faso, outro um país na África ocidental, com sintomas de cólera. Ele vinha do Níger, país vizinho que enfrentava um surto em larga escala da doença. Depois que o paciente infectado chegou ao centro de saúde, as autoridades de saúde locais emitiram imediatamente uma notificação ao governo, o que permitiu que as autoridades nacionais entrassem em ação no mesmo dia e apoiassem uma resposta coordenada.
O paciente e as quatro pessoas com quem ele teve contato - colegas motoristas e o proprietário do veículo em que ele foi levado ao hospital - foram rapidamente isolados e monitorados. Equipes foram enviadas à outra cidade, para localizar um outro motorista que adoeceu antes desse e com quem o novo infectado teve contato para determinar se a doença era cólera, identificar contatos adicionais e higienizar áreas de preocupação, incluindo latrinas na fronteira.
Todas as pessoas que tiveram contato com os pacientes diagnosticados com cólera receberam antibióticos profiláticos para prevenir a infecção. Ao mesmo tempo, as autoridades regionais de saúde atualizaram os planos de resposta à cólera que levaram em consideração o contexto de segurança do país.
O governo começou a informar a mídia e intensificar as comunicações de risco na comunidade via rádio e em reuniões comunitárias com líderes locais para discutir estratégias para prevenir a propagação da doença. Agentes de saúde visitaram restaurantes e açougues para aconselhar sobre higiene adequada, enquanto distribuíam suprimentos para desinfecção, equipamentos de proteção e medicamentos. Funcionários construíram latrinas para centros de tratamento de surtos para reduzir o risco de cólera se espalhar nas comunidades e realizaram treinamentos em escolas sobre saneamento adequado. Funcionários da saúde, bem como grupos comunitários, foram informados sobre o manejo e as medidas preventivas do cólera.
Essa rápida ação permitiu o controle de um potencial surto e nenhum outro caso foi relatado no país.
Raiva, na Tanzânia
No ano passado, um menino de 12 anos chegou ao hospital mais próximo da aldeia onde sua família morava, na Tanzânia, com sintomas consistentes com raiva: febre, dor de cabeça, ansiedade, confusão mental, agressividade, medo de água, dificuldade para engolir e salivação incontrolável. Sua família disse aos médicos que algumas semanas antes, ele havia sido mordido por um cachorro desconhecido, sem motivo.
Ele chegou ao local em coma e morreu duas horas depois. No dia seguinte, a equipe do Hospital notificou as autoridades de saúde pública sobre o caso suspeito de raiva. Além disso, três outros garotos, que estavam com o paciente no momento do ataque, poderiam estar infectados.
As autoridades começaram uma corrida contra o tempo para fornecer vacinação contra a doença para os meninos sobreviventes que haviam sido expostos à raiva. Uma equipe foi até a aldeia para para identificar qualquer pessoa que pudesse ter sido exposta à raiva e oferecer-lhes a profilaxia pós-exposição, por meio da vacina.
No local, os profissionais de saúde identificaram os três meninos sobreviventes mordidos pelo cachorro e descobriu que cinco membros adultos da família do menino falecido tiveram contato com sua saliva antes de morrer. A equipe também identificou duas meninas que recentemente foram mordidas por outro cachorro não identificado, em um ataque semelhante.
Imediatamente, toda a comunidade foi informada sobre o risco de raiva e sobre a existência de uma vacina que, quando administrada após o contato, pode impedir o desenvolvimento da doença. Todas as pessoas que foram mordidas ou tiveram contato com casos suspeitos da doença receberam o esquema completo de vacinação e o surto pôde ser controlado.
Estima-se que cerca de 1.500 pessoas morrem a cada ano de raiva na Tanzânia. O governo pretende eliminar a doença do país até 2030. Mas, até que isso aconteça, esse caso na zona rural mostrou que é possível conter futuros surtos usando estratégias sustentáveis e econômicas, como a vacinação de cães e uma rápida equipe de resposta.
Influenza, no Brasil
Navios são o local perfeito para a disseminação de doenças infecciosas. Basta lembrar dos surtos de Covid-19 relatados em diversos cruzeiros no início de 2021. Em dezembro do mesmo ano, após a retomada das operações no país, um navio navegava na costa do Rio de Janeiro com mais de 3.500 pessoas a bordo quando vários membros da tripulação começaram a apresentar sintomas semelhantes aos da gripe.
Três dias depois, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (ANVISA) foi notificada que três tripulantes haviam testado positivo para Influenza A e outros13 tiveram contato próximo com tripulantes infectados. Após a notificação, as autoridades sanitárias locais agiram imediatamente e formaram um Centro de Operações de Emergência (COE).
No dia seguinte à notificação, epidemiologistas de campo embarcaram no cruzeiro para coletar amostras e investigar novos casos. A equipe também revisou dados de registros médicos, realizou testes de laboratório para identificar a cepa viral exata da gripe e implementou protocolos de quarentena a bordo do navio para contatos próximos dos infectados. Os que testaram positivo para influenza foram desembarcados do navio para isolamento em um hotel, onde foram monitorados diariamente.
As equipes também incentivaram medidas adicionais no navio para evitar uma maior propagação, incluindo uso obrigatório de máscara, distanciamento social e orientações de saúde. Os passageiros também foram incentivados a se vacinarem contra a gripe.
Dez dias depois, o surto foi declarado encerrado. Nenhum novo caso foi confirmado; não houve internações e nenhum dos passageiros foi infectado. A detecção precoce entre a tripulação impediu que a gripe se espalhasse para os passageiros. De acordo com o relatório, como os passageiros do navio voltariam para suas casas em todo o mundo após a viagem, parar a gripe nesses três tripulantes reduziu a propagação global da doença.
Dengue, na Indonésia
Após anos sucessivos de surtos de dengue, as comunidades da Indonésia tomaram medidas para reduzir o risco por meio da identificação precoce e ação rápida, e agora estão impedindo que os surtos comecem.
No início de dezembro de 2021, um residente de uma vila agrícola da Indonésia chegou a um hospital com sintomas febre, dores nas articulações e manchas vermelhas na pele. A área onde o paciente morava, com muitas lagoas e em plena estação das chuvas, estava em alerta máximo para a dengue. Em poucos dias, o morador recebeu um diagnóstico positivo para a doença.
Quem aconselhou a família a levar o paciente ao hospital foram voluntários da Cruz Vermelha, que fazem um trabalho naquela comunidade. Ao identificar um possível caso de dengue, antes mesmo do paciente ser oficialmente diagnosticado no hospital, os voluntários iniciaram atividades de comunicação de risco e envolvimento da comunidade para reduzir a probabilidade de novas infecções.
Eles iam de porta em porta para notificar as famílias de que havia um possível caso de dengue na aldeia e fornecer educação sobre a prevenção da doença. A maioria das famílias sabia como limpar seus banheiros para evitar uma infestação de mosquitos; no entanto, elas não sabiam muito sobre outras ameaças da reprodução do mosquito. Então os voluntários identificaram possíveis criadouros e trabalharam com a comunidade para erradicá-los.
O morador diagnosticado com dengue grave voltou para casa alguns dias depois e se recuperou totalmente. Nenhum outro caso de dengue foi registrado na região. As ações rápidas da Cruz Vermelha seguiram as melhores práticas para a mitigação da dengue. Uma pesquisa de 31 alertas de vigilância para dengue baseados na comunidade na Indonésia entre setembro de 2019 e setembro de 2020 constatou que todos, exceto três, foram posteriormente confirmados por meio de diagnóstico laboratorial.