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Entrevista

"Anvisa precisa de gente para trabalhar ou o colapso vai ocorrer", diz diretor-presidente da agência

De saída do cargo, Antônio Barra Torres se queixa da falta de quadros e relembra relação com Bolsonaro

O diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra TorresO diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres - Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

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Às vésperas de deixar a principal cadeira da Anvisa, Antônio Barra Torres, o diretor-presidente indicado por Jair Bolsonaro, mas que peitou o padrinho ao avançar com a vacinação de Covid-19, teme um colapso no funcionamento da pasta reguladora responsável por liberar cerca de 30% de tudo o que o PIB brasileiro produz atualmente. O almirante da Marinha que precisou usar colete à prova de balas devido às ameaças de bolsonaristas contra as vacinas fala ao O Globo da relação com Bolsonaro e Lula e do temor sobre a agência entrar em colapso por falta de servidores a partir 2025.

Sob sua gestão, o país enfrentou um uma pandemia de Covid-19, e senhor acabou peitando Jair Bolsonaro, que lhe colocou à frente da Anvisa, e que era contrário à vacina. Como avalia esse período?
Intenso. Eu achei que ia ser um emprego normal. Eu, que vinha do meio militar, de saúde militar, como médico, achei que ia ser uma coisa nova, mais normal, com hora para chegar, hora para sair, férias, feriado, como todo mundo tem. E aí o mundo mergulhou nessa loucura e tragédia que foi a pandemia. Então, foi muito intenso, drenante, desgastante. A densidade do dia naquele período não dá nem para comparar com antes e com depois. Talvez até por isso tenha passado relativamente rápido.

Em que momento o senhor decidiu enfrentar o governo Bolsonaro?
Não houve uma decisão assim. Nunca houve um momento de divergência ou de virada. Desde que assumi, meu trabalho sempre esteve alinhado com a ciência. E eu sou um quinto dos votos. O diretor-presidente de qualquer agência não tem o poder dele, monocrático, unitariamente, de decidir absolutamente nada, ele é um quinto dos votos. A agência, as áreas técnicas da agência sempre tiveram pautadas na ciência. O que aconteceu é que num dado momento, na minha análise, o governo começou a abrir dos parâmetros científicos, começou a adotar, crer e a divulgar coisas que não tinham sustentação científica. Nesse momento, o governo seguiu um caminho e a agência manteve o caminho que já trazia. A questão mais pública foi aquela que o presidente Bolsonaro questionou a vacina para criança e foi quando eu disse: ‘Olha, não tem nada. Se o senhor sabe de alguma coisa, investigue, mas não fique levantando hipóteses onde não existe’. Então, esse foi um momento de claro posicionamento distinto.

Depois de se opor a Bolsonaro, o senhor também rebateu uma declaração do presidente Lula...
O presidente Lula teve uma fala não feliz [ao criticar as filas de liberação de medicamente na Anvisa, Lula disse que tinha de morrer gente para acelerar o processo de análise]. O processo aqui não anda mais rápido porque é pessoa-dependente. Uma análise de uma documentação técnico-científica requer que pessoas de alta capacitação leiam, analisem, comparem, questionem. Ou seja, se eu tenho um dossiê de 15 mil páginas, que é normalmente o que acontece para uma vacina, eu tenho 10 pessoas, isso vai levar X horas. Se eu tenho 20 pessoas, vai levar X sobre 2. É cartesiano. E a Anvisa não tem gente, está com 1.409 servidores, dos quais mais de 400 já tem mais de 30 anos de serviço, já podem se aposentar.

O senhor já solicitou isso?
Só no governo atual foram 27 ofícios, reuniões, conversas. A Anvisa foi a única agência convidada a conversar com o gabinete de transição de governo federal ainda no final de 2022, quando o atual governo já estava eleito. E naquela época nós já levamos a questão de pessoal. Então, não há mais nada que a agência possa fazer.

Como está essa fila de que Lula reclamou?
Péssima, longa. Ela varia muito, porque a agência é muito plural na sua abrangência. Nós abrangemos medicamento, alimento, produtos médicos, medical devices, sangue, tecidos para transplante, cosméticos, saneantes domiciliares, imunobiológicos, portos, aeroportos, fronteiras, tabaco, agrotóxicos. Soma isso tudo, 10 anos o IBGE, em parceria com a Anvisa, mensurou qual era a fatia da economia brasileira regulada pela agência e deu 22,8%. Estima-se que hoje esteja perto dos 30% do PIB de tudo que se produz no Brasil. Com 1,4 mil servidores, você tem filas diferentes e nenhuma é boa. Uma associação contratou uma empresa que mensurou que há US$ 17 bilhões referentes a medicamentos esperando para serem analisados na fila.

Há risco de a agência entrar em colapso por falta de recurso humano?
Tem que ter gente para trabalhar. A FDA, nos Estados Unidos, tem 18 mil servidores. Lá tem 315 milhões de habitantes. A Anvisa não precisa ter 18 mil, mas 1,4 mil não dá. Desses 1,4 mil, 458 podem se aposentar hoje. Isso (falta de atenção) acontecia no governo passado porque era negacionista. E o governo atual? O presidente se vacinou na primeira semana que sentou na cadeira. A gente falou: ‘Agora vai’. Não foi. Em dois anos, tivemos 120 vagas autorizadas, mas ele nos deu apenas 50. Então, o colapso vai ocorrer. Quando? Ano que vem, possivelmente.

A necessidade de ampliar os servidores da Anvisa vai de encontro com a principal pauta do governo hoje de cortes de gastos e que inclusive virou tema na Marinha, que divulgou um vídeo alfinetando os “privilégios” que o governo quer cortar...

O que sei é que há uma fase ainda de conversas. Pelo menos foi noticiado ontem de entendimentos entre os comandos de força e o governo no sentido de tentar adequar melhor esses cortes. Eu não tenho informações. Me parece que deve ser necessário que haja esses cortes, agora quais setores cortar e porque cortar mais ou menos aqui ou ali. Eu não tenho esse detalhamento, nem essa motivação.

Mas o senhor, que é almirante, concorda com o vídeo da Marinha?
Esse vídeo está sendo muito falado, mas te confesso que eu não vi esse vídeo ainda.

E o senhor concorda com o aumento da aposentaria militar para 55 anos?
Olha, eu penso que deva ter sido bem estudado para chegar a esse ponto. A única coisa que eu relembro é que a profissão militar requer vigor físico. Eu, por exemplo, iniciei muito jovem. Eu estou com 60 agora pedi minha reserva com 55, já podendo ter ido embora dois anos antes. É uma profissão que exige vigor físico, mesmo nos postos mais altos. A gente tem inspeção de saúde, tem os testes de aptidão física. Então, imagino que isso tenha sido muito bem estudado para se manter o pressuposto da vitalidade do valor físico associado às necessidades, possivelmente de orçamento. O mundo também mudou. Na época dos meus pais, uma pessoa da minha idade, de 60 anos, era uma pessoa já bem debilitada fisicamente. Não que eu esteja em um exemplo de vigor físico, não. Mas, com certeza, eu estou melhor do que as pessoas de 60, de 30 anos atrás.

A PF revelou nos últimos dias que Jair Bolsonaro tramou e arquitetou, com a ajuda das Forças Armadas, um golpe. O senhor acha que Bolsonaro errou?
O que eu sei é que onde nós estamos numa fase em que a Polícia Federal chegou a uma série de conclusões, fez uma série de indiciamentos, já encaminhou para a Procuradoria Geral da República, que tem três caminhos, que são esses, que todo mundo sabe. Arquiva, pede mais informação, oferece denúncia. O que interessa para mim é caso no final tudo leve a enquadramentos e condenações, a parte não reflete o todo. As Forças Armadas são um conjunto de pessoas de bem, honestas, que estão fazendo o seu trabalho, sustentando suas famílias e contribuindo para o seu país. Como, aliás, todo mundo que trabalha num país civil ou militar faz, direta ou indiretamente. E eu não vejo razoabilidade nenhuma na hora que se identifica, se comprova por A mais B, desvio de conduta em A, B ou C, que isso seja replicado para o todo. Eu acredito muito na ambiência de trabalho de onde eu vim. E vejo que a maior comprovação disso é que todas essas teorias que tenham sido engendradas, criadas ou não, não prosperaram, não foram para a frente.Nós não temos transitado e julgado de absolutamente ninguém. Então agora é campo da opinião. E a minha opinião nesse momento é não dar opinião, é acompanhar e ver o que vai acontecer.

Mas o indiciamento do Almir Garnier não mancha a história da Marinha?
Não, não tenho como dizer nada disso neste momento. É preciso lembrar que essas pessoas têm passado ilibado. Eu sou oficial-general da reserva de uma das três forças armadas. Eu não cheguei ao posto e aos postos que eu cheguei tendo problemas pretéritos na minha vida civil ou militar. Então, em princípio, são pessoas dos quais não se tem outra notícia deletéria além do que está, neste momento, na fase de indiciamento pela Polícia Federal. Então, a gente tem que aguardar o processo. Eu, particularmente, não faço coro a vozes antecipadas quando se trata de acusar quem quer que seja. O processo está em andamento.

Mas o senhor estava sempre muito presente ao lado do presidente? O senhor sabia disso?
Não, não. Fui uma vez no Palácio do Planalto, na rampa, que é uma coisa linda. Isso foi até perguntado na CPI. E eu repito o que disse lá. Eu tinha (com Bolsonaro) uma relação pessoal, que eu não tenho com o presidente Lula. E quando ele me disse que ia para o Palácio, e eu estava próximo, fui lá para conversar com ele. Lá, havia aquela cerca. Na época, não vi problema nenhum. Depois, num segundo momento, é que realmente falei: ‘Poxa, não devia ter ido’. Então, se tivesse pensado melhor, eu não teria feito.

O senhor se arrependeu?
Hoje eu não faria. Mas, na época, eu não via maiores problemas em ir até lá.

Naquele momento, quando o senhor ainda estava próximo ao presidente, o senhor soube dessa trama golpista?
Nunca ouvi absolutamente nada disso. Nada, não. Nunca ouvi nada disso.

O senhor ficou surpreso quando ouviu essa questão de golpe, essa trama toda?
Me surpreende porque parece uma coisa meio anacrônica. Me causa uma certa surpresa por ser algo totalmente fora do contexto, totalmente fora dos tempos modernos. De maneira geral, entretanto está aí. Bom, temos que lembrar o que aconteceu nos Estados Unidos também, aliás com um ano e dois dias de antecipação. Praticamente a mesma coisa, lá que eu saiba ninguém tentou nada contra a Casa Branca. Mas lá, inclusive, infelizmente, houve seis mortos. Uma coisa horrível.

O senhor já esteve com Lula?
Nunca conversei com o presidente. A vez que eu estive mais perto do presidente Lula, foi logo no início do mandato dele, num ato extremamente louvável da parte dele, quando ele se decidiu vacinar publicamente no postinho de saúde do Guará. E eu fui. E tive com ele agora no jantar com presidente Xi Jinping. Que foi o primeiro e único convite do presidente e da primeira-dama para mim. Mas eu não tenho contato com ele, nunca falei, nunca apertei a mão do presidente Lula.

E o senhor retomou relações com Bolsonaro após aquela carta pública?
Sim, durante o governo falei com ele depois da carta. Precisei aconselhá-lo em um projeto que extinguia o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos Remédios. Eu precisei assessorar o presidente, no sentido de que vetasse o projeto. Então falei com ele nessa época sobre isso. Então assessorei e fui recebido por ele de maneira lisa, sem nenhum problema decorrente. Logo depois o presidente entrou na campanha. Quando eu estive com ele até quis tocar no assunto, mas ele falou que era página virada. Essa foi a última vez que eu estive com ele pessoalmente.

Recentemente o sindicato denunciou “manobras” na Anvisa, de que um diretor estaria acumulando pastas para aumentar o poder de influenciar do senhor na agência...
(Acumular diretorias) É uma solução precária. É uma solução precária quando a verdadeira face do problema não é enfrentada. Eu acho tão interessante periódicos e pessoas sérias se dedicarem a essa perda de tempo, que poderiam estar canalizando essa energia de maneira muito mais interessante em saber por que um cargo de diretor vago há um ano e três meses, não tem uma indicação. Será que não tem gente competente para assumir? Será que não tem força política que queira ter uma direção na agência?

E o senhor sabe o que está por trás desse impasse?
Não sei. Agora me causa estranheza que se preocupe com uma situação, que é precária e inadequada e não encare o problema. Outra diretora sairá dia 12 de dezembro e também não tem substituto. Eu saio dia 21. A Anvisa a cuida de 30% do PIB e qual é o nome que vem pro meu lugar? Não sei. Eu considero isso sério. Eu queria poder ter a pessoa que vai sentar na minha cadeira aqui, minimamente, para a gente poder conversar, que fosse um dia. Então, quer dizer, isso eu considero bastante sério.

Os diretores da Anvisa foram alvos de denúncias no passado por pessoas anti-vacina. O que aconteceu?
Foram 458 e-mails com ameaça de morte, tortura, violência. Dos 458 e-mails, um foi tão audacioso que ele botou nome, telefone, CPF e endereço. Veio de Curitiba. Ele escreveu assim: ‘quem tocar meu filho eu mato’. A polícia do Paraná bateu na campainha dele. Levou para a delegacia, não sei o que deu. Os outros (casos) o senhor Anderson Torres, esse que hoje está de pulseirinha no tornozelo, respondeu para nós, porque a gente pediu proteção policial, que nos protegeria, mas teríamos de mudar de cidade, de nome, de CPF, de celular. A gente não quis. A gente preferiu continuar com orações fervorosas. Eu andei de colete à prova de bala durante muito tempo. Tenho até hoje. Está na minha casa, cedido pelo GSI e renovado pelo GSI do presidente Lula. Bem desconfortável.

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