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Justiça

Argentina pede afastamento de juíza que ordenou a libertação de detidos em protesto por aposentados

Magistrada diz que governo não lhe enviou informações básicas sobre as detenções, e que priorizou 'direitos constitucionais' ao tomar a decisão

Manifestante se protege do gás lacrimogêneo durante protesto contra o governo Milei em Buenos Aires, em 12 de março de 2025Manifestante se protege do gás lacrimogêneo durante protesto contra o governo Milei em Buenos Aires, em 12 de março de 2025 - Foto: Luis Robayo / AFP

Dois dias após as manifestações em apoio aos aposentados na Argentina terem resultado na prisão de mais de 100 pessoas, o governo argentino apresentou uma denúncia penal por sedição, atentado à ordem constitucional e à vida democrática e associação ilícita agravada pelos eventos violentos ocorridos nos arredores do Congresso.

O documento solicitou, também, o afastamento da juíza Karina Andrade, que ordenou a libertação dos detidos, e apontou como possíveis envolvidos os opositores Fernando Espinoza, Frederico Otermín e Mario Firmenich, além dos grupos de torcidas organizadas que teriam promovido “distúrbios com fins desestabilizadores” durante a marcha.

Alvo de críticas do governo, Karina justificou sua decisão de conceder liberdade aos 114 detidos nos protestos.

Mais cedo nesta sexta-feira, antes da denúncia ter sido apresentada pela administração de Javier Milei, a magistrada disse que o governo não lhe enviou nem mesmo informações básicas sobre as detenções — e que por isso ela priorizou o respeito aos direitos constitucionais, como o da livre manifestação.

Ela também defendeu que seu argumento foi “estritamente jurídico”, e que em nenhum momento o Poder Judiciário foi informado sobre a suspeita de um plano criminoso premeditado para a marcha.

— O procedimento não foi cumprido, e isso é o básico das detenções — declarou Andrade à Rádio Urbana Play, explicando os motivos pelos quais emitiu a decisão. —Há algo que deve ser garantido aos idosos: a liberdade de expressão, um direito que é constitucional. As detenções ocorreram sem que fossem comunicadas a mim, e levou horas para que eu recebesse alguma informação. Quando finalmente fui informada, não havia nem mesmo dados precisos sobre os locais das detenções. Em nenhum momento me informaram sobre apreensão de armas.

A juíza ressaltou que agora a Procuradoria será responsável por investigar cada um dos detidos e que, caso as provas justifiquem a detenção, ela poderá novamente ser solicitada no processo. Ela insistiu que não recebeu nenhum pedido de medida cautelar ou mandado de busca antes do processo, apenas a notificação de que uma manifestação ocorreria.

Andrade ainda afirmou que as informações enviadas a ela eram genéricas, sem individualização dos detidos – que, por outro lado, tinham um pedido formal de defesa para revisar suas detenções.

— Minha decisão deixou claro o procedimento básico para a detenção de uma pessoa no país. Meu argumento foi jurídico e fundamentado na Constituição. É obrigação dos juízes de plantão tomar decisões com base nos elementos disponíveis no momento. Devemos garantir uma resposta rápida conforme a Constituição, sem comprometer a investigação legítima do Estado sobre possíveis crimes cometidos.

Andrade explicou que os dados mínimos necessários para comunicar uma detenção são: nome, documento de identidade, local exato da prisão, nome do policial responsável e da força envolvida.

Ela também declarou que sempre exige “um resumo sucinto dos fatos no caso de acusações de desobediência”. No entanto, relatou, as informações que recebeu eram “genéricas, em individualização dos detidos”. Em dado momento, disse, ela começou a receber dados apenas com escritos de “mesma situação” e “mesmo local”.

— Não aconteceu com os primeiros detidos, mas depois comunicaram um grupo de cerca de 80 ou 60 pessoas de uma só vez, não me lembro o número exato. Nossa Constituição garante o direito à manifestação, e isso deve ser respeitado. Se um grupo anuncia uma manifestação, deve-se assegurar que ninguém cometa crimes nesse contexto, mas também que todos possam se manifestar livremente. Aqueles que cometerem crimes devem ser detidos, mas dentro das regras legais.

Na denúncia apresentada pelo Ministério da Segurança nesta sexta-feira, o governo diz considerar que a decisão da magistrada foi precipitada porque “não houve avaliação adequada das provas apresentadas, os antecedentes criminais dos detidos não foram analisados e a juíza teria descumprido normas processuais”, podendo ser acusada de prevaricação.

A acusação aponta que grupos organizados “participaram ativamente da violência” e que teriam objetivo de “desestabilizar o governo” de Milei.

“Temos elementos que indicam que essa mobilização foi financiada com o objetivo de gerar instabilidade política”, aponta a denúncia. Andrade, por sua vez, disse à imprensa argentina que sua “audiência pública está disponível”, e que lá ela apresentou sua trajetória. Ela argumentou que é “uma pessoa técnica”, independentemente de qualquer cargo que tenha ocupado no Poder Judiciário. Para a juíza, as acusações contra ela “desvalorizam o Conselho da Magistratura, que nomeia juízes e juízas”.

— Acredito que essa é uma forma de expressar a insatisfação do governo com minha decisão — declarou.

"Espécie de golpe de Estado"
Na quinta-feira, Milei denunciou o que disse ser “uma espécie de golpe de Estado” promovido pelos manifestantes, apoiados pelo peronismo kirchnerista.

Mesmo sem provas, a tese também foi defendida pelo chefe do importante Gabinete da Nação Argentina, Guillermo Francos, e a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, levantou a acusação contra os prefeitos de La Matanza e Lomas de Zamora, dois distritos na periferia de Buenos Aires ligados à ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015).

Para a Casa Rosada, a participação de torcidas de diversos times de futebol na manifestação não foi espontânea.

O protesto terminou com confrontos entre manifestantes e policiais, deixando os mais de 100 detidos e mais de 40 detidos, incluindo policiais e civis.

Entre os casos mais graves está o do fotógrafo Pablo Grillo, que sofreu uma lesão grave na cabeça após ser atingido por um cartucho de gás lacrimogêneo.

Na quinta-feira, o prefeito de Buenos Aires, Jorge Macri, confirmou que Grillo está “lutando entre a vida e a morte”.

Os incidentes, os mais graves desde a posse de Milei em dezembro de 2023, não resultaram em nada que se assemelhe a um golpe de Estado, mas evidenciaram que o governo ultraliberal perdeu o controle total das ruas, publicou o El País.

Nas últimas semanas, uma sequência de erros políticos e escândalos colocou seu governo na defensiva, com a queda de popularidade começando ainda em janeiro, no Fórum de Davos, quando Milei associou casais homossexuais à pedofilia, provocando protestos de mais de 80 mil pessoas na capital argentina.

Pouco depois, explodiu o escândalo da criptomoeda $Libra, um esquema fraudulento promovido pelo próprio Milei nas redes sociais.

O caso gerou investigações judiciais nos Estados Unidos e suspeitas de corrupção envolvendo sua irmã, Karina Milei, considerada uma peça-chave de seu governo. Em seguida, o presidente desrespeitou a Constituição ao nomear por decreto dois juízes para a Suprema Corte, ignorando o papel do Senado. A manobra enfureceu a oposição, que agora tem votos suficientes para bloquear as indicações.

Crise dos aposentados
Os aposentados são um dos grupos mais respeitados e combativos da Argentina. Desde os anos 1990, lideram a resistência contra cortes de benefícios sociais.

Há cinco anos, grupos de aposentados organizam protestos semanais em frente ao Congresso, sempre de forma pacífica.

Nos últimos meses, porém, a repressão policial se intensificou, tendo como base o protocolo “antipiquetes” de Bullrich, a ministra da Segurança, que autoriza o uso da força caso o trânsito seja bloqueado.

A imagem de um idoso espancado enquanto usava a camisa do Chacarita viralizou e mobilizou outras torcidas organizadas, incluindo Boca, River, Independiente e Racing.

O governo então acusou esses torcedores de serem pagos por peronistas para derrubar a administração de Milei.

O resultado foi a manifestação violenta de quarta-feira, que, ao mesmo tempo em que fortalece a oposição, revela o tamanho do desafio enfrentado agora pelo presidente argentino.

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