As batalhas de Trump com as universidades podem mudar a cultura americana por uma geração
Muitos no ensino superior têm receio que os esforços do presidente para submeter o mundo acadêmico à sua vontade possam acabar com a liderança dos EUA na ciência
Em outubro de 2023, três dias antes do Hamas atacar Israel, a nova reitora da Universidade de Columbia ficou à porta da Low Library e colocou uma questão fundamental: “O que é que o mundo precisa de uma grande universidade no século XXI?”
A egípcia Nemat Shafik argumentou que o mundo precisava de muitos pensadores rigorosos, fundamentados nos grandes debates da época, investigadores cujas descobertas pudessem transformar as sociedades e universidades que estendessem as suas missões muito para além dos seus portões.
Dezessete meses depois, Shafik renunciou ao cargo de reitora, e a administração Trump teve uma resposta bem diferente. O ideal descrito por ela, em grande parte financiado historicamente pelos contribuintes americanos, está sob ataque, pois o presidente republicano vincula o dinheiro público à visão do governo para o ensino superior.
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Essa visão é mais restrita: ensine apenas o essencial, defenda “a tradição americana e a civilização ocidental”, prepare as pessoas para o mercado de trabalho e limite protestos e pesquisas.
— Não experimentei, ao longo de 46 anos no ensino superior, um período com tanto distanciamento entre as agendas dos líderes universitários e de Washington — disse Robert J. Jones, chanceler da Universidade de Illinois Urbana-Champaign.
O resultado desse embate sobre o propósito do ensino superior pode moldar a cultura americana por uma geração ou mais. Se o presidente realizar suas ambições, muitas universidades americanas — públicas ou privadas, em estados conservadores ou progressistas — podem ser esvaziadas, comprometendo a espinha dorsal dos esforços de pesquisa do país.
Demissões de funcionários e laboratórios fechados
Dois meses após o início do mandato de Trump, universidades estão demitindo funcionários, impondo congelamentos de contratações, fechando laboratórios e enfrentando investigações federais. Depois que o governo enviou à Universidade de Columbia uma lista de exigências e cancelou US$ 400 milhões (cerca de R$ 2,2 bilhões) em subsídios e contratos, líderes universitários em todo o país temem como o governo pode usar seu poder financeiro para influenciar currículos, contratações e admissões.
— As faculdades receberam centenas de bilhões de dólares dos trabalhadores americanos — disse Trump em um vídeo de campanha. — E agora vamos acabar com essa insanidade anti-americana em nossas instituições de uma vez por todas. Vamos ter uma educação de verdade na América. O objetivo, segundo Trump, é recuperar “nossas outrora grandes instituições educacionais da esquerda radical”.
Outros republicanos expressaram suas próprias frustrações com o ensino superior, muitas vezes com uma linguagem mais moderada. O senador Bill Cassidy, republicano da Louisiana e presidente do Comitê do Senado para Saúde, Educação, Trabalho e Pensões, reclamou abertamente em uma audiência no mês passado que as faculdades “não estão preparando os alunos para ter sucesso no mercado de trabalho moderno”.
Com o poder presidencial amplificado por um Congresso amplamente submisso, os desafios de Trump à liberdade acadêmica e às proteções da Primeira Emenda não provocaram uma indignação pública generalizada. A realidade preocupante para os líderes universitários é que Trump tem a vantagem administrativa, e a academia tem poucos aliados dispostos a se manifestar.
Ataque de Trump e Vance ao ensino superior
O ataque ao ensino superior liderado por Trump e pelo vice-presidente JD Vance — ambos com diplomas da Ivy League — é mais intenso do que as campanhas conservadoras anteriores contra as instituições acadêmicas de elite do país. No entanto, a administração está se aproveitando de falhas que há anos corroem a reputação do sistema.
"O gênio dele foi entender e depois explorar os ressentimentos, as ansiedades e as vulnerabilidades de eleitores que já tinham sentimentos críticos em relação ao ensino superior", escreveu Ronald J. Daniels, presidente da Universidade Johns Hopkins, em seu livro "What Universities Owe Democracy", de 2021.
Pesquisas privadas realizadas para universidades mostram que muitas pessoas acreditam que essas instituições sem fins lucrativos são tudo, menos isso — uma consequência dos altos custos das mensalidades. Embora uma educação universitária geralmente proporcione rendimentos maiores ao longo da vida, o aumento das dívidas tornou o valor de um diploma um tema de debate. Políticos têm se aproveitado disso, caricaturando as universidades como redutos de intolerância e “wokeismo”, onde os processos de admissão às vezes consideram raça ou favorecem os bem relacionados.
Apesar de toda a sua grandiosidade, administradores e professores frequentemente admitem que não conseguiram formular respostas simples contra críticas recorrentes.
Um trabalho em andamento
As universidades tentaram se tornar mais acessíveis, diversificando suas turmas e oferecendo mais ajuda financeira. Mas o chanceler Jones, que assumirá a presidência da Universidade de Washington, descreveu a estratégia de relações públicas do ensino superior como “um trabalho em andamento”.
Muitos líderes reconhecem que, embora o papel da universidade na vida americana seja claro, ele se tornou confuso para muitos outros.
— O ensino superior sempre pôde se apoiar em sua autoridade moral — disse Roger L. Geiger, professor emérito da Universidade Estadual da Pensilvânia e uma das maiores autoridades na história das universidades americanas. — O que aconteceu é que eles simplesmente perderam essa autoridade moral.
Em 2012, a Pew Research Center descobriu que 26% dos americanos acreditavam que faculdades tinham um impacto negativo nos EUA. No ano passado, antes mesmo das manifestações nos campi que resultaram em milhares de prisões, esse número subiu para 45%.
Grande parte da agenda de Trump para o ensino superior durante seu primeiro mandato favoreceu faculdades com fins lucrativos. Agora, porém, ele está mirando diretamente nas culturas e missões das grandes universidades sem fins lucrativos. Seus métodos, segundo funcionários e pesquisadores, podem levar o ensino superior americano a um período mais próximo daquele em que as universidades “eram mantidas separadas do mundo ao seu redor”, como sugeriu Shafik.
Havard foi criada no período colonial
O ensino superior americano precede a própria fundação do país. Harvard, por exemplo, foi criada no período colonial para formar clérigos. A ideia de George Washington de uma universidade nacional nunca se concretizou, mas Abraham Lincoln teve mais sucesso ao associar o ensino superior à ambição americana, ao assinar a lei que levou à criação das universidades financiadas pelo governo federal.
A pesquisa se tornou um foco universitário no final do século XIX. A dependência do país das universidades aumentou drasticamente durante e após a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA passaram a contar com a academia mais do que a maioria dos outros países.
Consequências dos cortes de financiamento
Essa relação simbiótica agora está ameaçada. O governo enquadrou seus cortes propostos como uma forma de garantir que “o máximo possível de recursos vá diretamente para a pesquisa científica”. Mas também descreveu o modelo atual em termos duros, alegando que criou um “fundo secreto” para administradores liberais.
A abordagem da administração Trump representa “uma nova era”, disse o professor Roger L. Geiger. Além de afetar pesquisas individuais, cortes no financiamento federal podem gerar grandes consequências para a estrutura e os objetivos das universidades.
John Thelin, professor emérito da Universidade de Kentucky, afirmou que, até recentemente, nenhum reitor ou presidente de universidade parecia preocupado com a evaporação do financiamento. Agora, para ele, é difícil encontrar um que não esteja apreensivo.
Por enquanto, Trump não deu sinais de que pretende recuar. Isso tem levado líderes acadêmicos a buscar desesperadamente formas de preservar um ideal que insistem ser fundamental.
Questionado se temia uma reformulação completa da universidade americana, Jones respondeu que não gostava de usar a palavra “medo”.
— É uma preocupação. Não posso dizer que não seja algo que muitos de nós estamos preocupados — finalizou.