Esnobada por Assad, Turquia agora se prepara para colher os frutos de seu apoio aos rebeldes sírios
Ancara tem sido o ator mais consistente durante os 13 anos de guerra civil na Síria, desde 2011 demonstrando apoio aos opositores do regime
A Turquia tem sido o ator mais consistente durante os 13 anos de guerra civil na Síria. Desde 2011, o governo de Recep Tayyip Erdogan tem demonstrado seu apoio aos opositores da ditadura de Bashar al-Assad, primeiro pedindo a Damasco que ouça os manifestantes, depois abrindo suas portas para os que fogem da repressão e, por fim, armando os rebeldes — a maioria dos quais agora luta sob a bandeira do Exército Nacional Sírio (SNA, na sigla original).
Enquanto os Estados árabes, que inicialmente apoiaram a rebelião, fizeram as pazes com Assad nos últimos anos e o aceitaram novamente na Liga Árabe, Ancara continuou financiando e apoiando os rebeldes, inclusive levando seu exército para várias áreas do norte da Síria, sob o pretexto de conter a milícia curda YPG, que a Turquia acusa de ser uma extensão de um grupo rebelde curdo proibido internamente, o PKK — o YPG é a maior milícia da aliança das Forças Democráticas da Síria (SDF), apoiada pelos EUA e liderada pelos curdos, que controla grande parte do nordeste do país.
Agora, Erdogan está se preparando para colher os frutos de seu apoio aos rebeldes, enquanto o futuro papel das outras potências mundiais e regionais envolvidas está envolto em incertezas.
"Há um mês, a Turquia era o fator mais fraco, não sei se era o mais fraco, mas o fator mais infeliz da equação", diz Khaled Joya, ex-presidente da Coalizão Nacional Síria, o principal órgão da oposição síria no exílio, destacando que até o início da ofensiva-relâmpago que levou ao colapso do regime em 8 de dezembro, os rebeldes apoiados pela Turquia estavam confinados a um pequeno território no norte e noroeste da Síria.
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O governo de Erdogan vinha tentando, há meses, estabelecer um diálogo com Assad para negociar algum tipo de solução para o conflito sírio que oferecesse garantias suficientes para permitir o retorno de parte dos mais de três milhões de refugiados em território turco — que se tornaram um fator de fraqueza política para Erdogan, já que a oposição se aproveitou deles para minar seu apoio. Mas Assad, sentindo-se forte devido ao apoio russo e iraniano, deu as costas à oferta de cooperação do líder turco.
Agora a Turquia está em vantagem, pois, segundo Joya, “desempenhou um papel importante na vitória”. Ancara negou ter liderado a ofensiva, embora fontes do governo tenham reconhecido, em particular, que estavam cientes de sua preparação e tentaram evitá-la por meio da mediação com as outras potências envolvidas na guerra.
Apesar de terem participado da ofensiva, os combatentes do Exército Nacional Sírio — que são armados e pagos por Ancara — não foram responsáveis pela tomada de Damasco. A maior parte das operações foi realizada pelos salafistas do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), um grupo que a ONU lista como uma organização terrorista devido a suas antigas ligações com a al-Qaeda. Embora a Turquia não mantenha controle direto sobre esse grupo e tenha menos influência sobre ele, o HTS governou até agora em Idlib e dependia de suprimentos da vizinha Turquia, bem como da ajuda fornecida por organizações humanitárias turcas.
"A Turquia se tornou o ator externo mais influente na Síria e desempenhará um papel decisivo em seu futuro. Não que ela assuma o controle direto, mas desempenhará um papel de apoio, pois tem a confiança da população síria", diz Ömer Özkizilcik, do centro de pesquisas americano Atlantic Council.
Os refugiados sírios que vivem na Turquia há mais de uma década e retornam ao país a partir de agora podem se tornar facilitadores dessa influência turca, incluindo as dezenas de milhares de jovens sírios que estudaram em universidades turcas, tanto em território turco quanto naquelas abertas nas áreas do norte da Síria sob controle do exército turco, acrescenta Özkizilcik. Grande parte da oposição política no exílio também está baseada na Turquia e Ancara exerce grande influência sobre ela.
As principais empresas de construção da Turquia devem estar esfregando as mãos com os projetos de reconstrução que provavelmente receberão — em um país devastado por anos de bombardeio de cidades — como aconteceu no enclave armênio de Nagorno-Karabakh após a reconquista do Azerbaijão, também com o apoio militar turco. Na segunda-feira, as empresas relacionadas à construção listadas na Bolsa de Valores de Istambul, especialmente as produtoras de cimento e aço, abriram a sessão em alta, com ganhos de até 10%.
É provável que o Irã seja o mais prejudicado após o fim do regime de Assad, tendo sacrificado centenas de vidas de seu pessoal militar destacado para apoiar o ditador deposto. A mídia iraniana informou que a embaixada do Irã em Damasco foi invadida por manifestantes e divulgou vídeos de vidros quebrados e do interior danificado do prédio. Os rebeldes nutrem um ódio visceral pela República Islâmica e pelas milícias iranianas que lutaram ao lado do regime.
"Não acho que o Irã vá desempenhar qualquer papel no futuro da Síria", afirma Joya sem rodeios.
A Rússia, por outro lado, pode ser diferente. O líder do HTS, Abu Mohammed al-Jawlani, enviou esta semana uma mensagem tranquilizadora a Moscou e Pequim, afirmando que seu único alvo era o regime.
"Acredito que se os russos jogarem suas cartas com habilidade e se engajarem em uma diplomacia construtiva, eles terão uma chance de ficar e manter suas bases militares, a base aérea em Hmeimim e a base naval em Tartus", avalia Özkizilcik.
Tartus é a principal base da Rússia no Mediterrâneo.
"Os Estados árabes tentaram reerguer o regime de Assad, mas tudo o que conseguiram dele foram drogas", diz Muhamad Otri, membro da oposição no exílio, referindo-se à produção de captagon (um tipo de anfetamina) que o regime de Assad usou para se financiar e com a qual os países do Golfo foram inundados. "Portanto, os Estados árabes não têm influência sobre os revolucionários sírios".
De todos os países do Golfo, o Catar tem mantido um apoio financeiro consistente aos rebeldes por meio da Turquia. Os EUA são outro ator importante com presença na Síria. Eles mantêm cerca de 900 militares no nordeste do país e realizaram bombardeios aéreos em apoio à milícia curdo-árabe Forças Democráticas da Síria (SDF). Para a Turquia, essas forças são “terroristas”, pois a principal força dessa coalizão é a milícia YPG, o braço sírio do grupo armado curdo PKK, que opera em território turco e está incluído na lista de organizações terroristas dos EUA, da União Europeia e da Turquia.
"Os EUA farão pressão para incluir o componente curdo no novo governo sírio, mas a Turquia veta a presença do YPG. Essa é uma questão que Ancara e Washington terão que resolver", comenta Joya.
De fato, no domingo, o Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia, lançou um grande ataque contra a cidade de Manbij, no norte da Síria, controlada pelos curdos.
"A colaboração entre a União Europeia, os países árabes, os Estados Unidos e talvez a Rússia será muito importante para a transição e a reconstrução da Síria. Mas, é claro, a Turquia assumirá a liderança", conclui Özkizilcik.