Logo Folha de Pernambuco

CRIME

Assassinato de Ana Lídia completa 50 anos de silêncios e impunidade

Contexto ditatorial no país favoreceu desfecho de "mistérios"

Ana LídiaAna Lídia - Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

Uma dor intraduzível. Um trauma brasileiro imensurável. O silêncio e o medo típicos de um momento de ditadura. “Eu nunca vi um silêncio como aquele. Era um silêncio sepulcral. As pessoas não precisavam falar. Elas só olhavam e cada uma sabia o que a outra estava pensando e sentindo”, lembra a professora universitária Rosângela Vieira Rocha, hoje, aos 70 anos de idade, em entrevista à Agência Brasil. Ela era amiga da família de Ana Lídia Braga, menina de apenas 7 anos de idade, que foi capturada, torturada e morta (e ainda depois violentada sexualmente), em Brasília, naquele 11 de setembro de 1973.

Cinquenta anos depois, a crueldade se torna ainda mais inacreditável diante da impunidade e da investigação falha. Segundo o processo guardado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, no dia 11, por volta de 13h50, a menina, que era filha caçula dos servidores públicos Álvaro Braga e Eloyza Rossi Braga, desapareceu na porta de um colégio particular (Madre Carmen Salles) na Asa Norte, em Brasília. O processo, que tramitou na 7ª Vara Criminal e no Tribunal do Júri de Brasília, aponta que testemunhas viram que um homem loiro e alto levou a menina da escola naquela tarde.  

Confira o processo na íntegra disponibilizado pelo TJDF.

O mundo desabou quando a empregada da família foi buscá-la e recebeu a informação que a menina não esteve nas aulas naquele dia. Ainda de acordo com o processo, a família chegou a receber dois telefonemas com pedido de resgate. No dia seguinte, o corpo da criança morta foi encontrado em uma valeta, nua, coberta por terra, os cabelos cortados e sinais de violência física e sexual. A estimativa dos peritos é que Ana Lídia tenha sido assassinada às 6h da manhã do dia 12.

Na ocasião, o inquérito policial apontou que um funcionário público, Raimundo Lacerda Duque (que trabalhava com a mãe da menina), de 30 anos, e o irmão de Ana Lídia, o estudante Álvaro Henrique Braga, de 18 anos, foram os responsáveis pelo crime.

Duque era subordinado à mãe de Ana Lídia no Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp). Segundo o processo, o rapaz era usuário de drogas. Ele fugiu depois que as investigações indicavam a participação dele no crime. Eles chegaram a ser presos, mas foram absolvidos, em 1974, por “falta de provas”. Duque morreu de alcoolismo em 2005 . O irmão da menina, Álvaro, é médico angiologista no Rio de Janeiro. Por telefone, ele disse à Agência Brasil que não gostaria de falar sobre o caso. 

A então estudante de jornalismo Rosângela Vieira Rocha era amiga de escola de Cristina Elizabeth Braga, que tinha 20 anos, irmã mais velha da menina Ana Lídia. Rosângela frequentava a casa da família. “Eu lembro da voz da Ana Lídia. Ela sempre conversava com a gente. A menina era cercada de muito carinho por parte da irmã e de todos. O tempo não tirou da gente essas lembranças fortes”, disse, emocionada, em entrevista à Agência Brasil. 

Depois da morte da menina, Rosângela nunca mais viu Cristina (que era estudante de sociologia) ou a família dela. “Lembro que eram todos muito carinhosos com a menina também em função da diferença de idade. Ana Lídia tinha uma voz fininha, era muito engraçada e não tinha timidez. Loirinha com os olhos azuis, que viviam com as revistinhas do Pateta”.

Rosângela recorda que a família tinha um piano na sala de casa com a foto da mãe grávida de Ana Lídia. Outra lembrança é que Duque, acusado pelo Ministério Público pelo assassinato, antes havia passado a conviver com a família a partir do apoio que Eloyza resolveu prestar ao funcionário, que era usuário de drogas. Quando chegou a notícia do desaparecimento e da morte, conforme Rosângela recorda, houve um grande desespero da família. 

Uma vizinha da família na Asa Norte, Lunamar Queiroz, que atualmente trabalha como artesã, recorda de um momento marcante, sobre quando o irmão soube pela polícia que a irmã estava morta. "Nós escutamos o grito dele imediatamente. Eu escuto até hoje aquele grito de horror".

Cerceamento
A tristeza, naqueles dias, não podia ser expressada de forma mais enfática, segundo Rosângela Vieira, porque havia medo. Havia receio de realização de protestos, mas a cidade estava atônita. “Olhávamos uns para os outros e chorávamos. Mas a imprensa noticiou o fato com superficialidade. Como estudante de jornalismo, sabíamos que a profissão era cerceada. Era tudo muito difícil.” 

O Brasil vivia a ditadura do governo de Emílio Garrastazu Médici.  A mesma certeza do cerceamento tem o jornalista e pesquisador Roberto Seabra. Ele escreveu o livro Silêncio na Cidade, uma obra de ficção totalmente inspirada no que pesquisou sobre o crime.

Para escrever, ele trocou os nomes das personagens em vista de não haver respostas oficiais, nem de familiares, que também silenciaram a respeito do episódio. Assim, no livro, o nome Ana Lídia foi trocado por Ana Clara, por exemplo. O pai do jornalista, inclusive, era policial na ocasião do crime e dizia ao filho que não faltavam provas, mas sim vontade de concluir o inquérito.

Uma versão do livro de Seabra voltada para adolescentes será lançada no final de setembro.

Silêncio
“Meu pai falava que havia um caminhão de provas e que não investigavam porque não queriam. A investigação foi interrompida e a imprensa foi proibida de falar sobre o tema. Por que proibir a cobertura do assassinato de uma criança de sete anos?” Ele atribui a situação ao fato do país viver uma ditadura militar e estranhamente haver ordens para um silenciamento. 

O caso ganhou mais mistério quando a imprensa passou a divulgar um suposto envolvimento do filho do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid Júnior, e do filho do senador Eduardo Rezende, Eduardo Eurico Rezende. A partir dessas repercussões, como explicam pesquisadores do caso, a censura mostrou sua mão mais forte.

A pesquisa é complexa porque, em 1974, o Departamento de Polícia Federal encaminhou aos veículos de comunicação uma “ordem superior” que tornava proibida a divulgação do caso Ana Lídia.

Seabra investigou o tema durante cinco anos e utilizou até a documentação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), do ano de 1974, formada na Câmara para investigar o tráfico de drogas em Brasília. Ele ouviu de outros colegas jornalistas que a investigação do caso não seria prioridade na cobertura. “A investigação foi mal feita, a imprensa foi proibida de cobrir o assunto e o Ministério Público foi afastado do caso.”

Confira dados resgatados da CPI de 1974.

Silêncio ruidoso
Perto do final do governo militar, em 1982, o processo foi reaberto. “Mas o caso não evoluiu porque tudo foi mal instruído”. A família nunca se comunicou com o escritor nem respondeu os pedidos de entrevistas. Ao ligar o episódio ao silenciamento movido por autoridades, Seabra diz que recebe xingamentos.

“Um dos argumentos que o pessoal usa pra me atacar nas redes sociais é que hoje morreriam mais crianças do que naquele tempo. Se não houvesse impunidade, não estaríamos falando sobre este silenciamento até hoje”.

Seabra entende que a visibilidade é fundamental para a história ao mostrar que a censura é capaz de ocultar direitos básicos de cidadania, como o de encontrar os culpados de um crime. “Eu não quero que meus filhos cresçam achando que Ana Lídia era uma santa. Era uma criança de sete anos que foi assassinada e os criminosos nunca foram descobertos. Um crime contra infância e de gênero."

A professora de história Joelma Rodrigues da Silva, da Universidade de Brasília, escreveu a tese Amordaçadas e ruidosas, sobre histórias de crianças vítimas de crimes horrendos como o de Ana Lídia e que passaram a ser cultuadas como “santas”. Ela contextualiza que, em maio de 1973, a menina Araceli, de 8 anos, também havia sido estuprada e morta.

“Em ambos os casos, pessoas influentes da política foram envolvidas. Trata-se de um ano de violência da ditadura não só no Brasil, mas também na América Latina. A gente tem um contexto de violência e de silêncio. Um silêncio ruidoso. É um silêncio que grita.”

A professora Joelma acrescenta que uma estratégia do Estado ditador da ocasião foi aproveitar o caso de Ana Lídia para investir contra e atribuir culpas a “drogados” e “homossexuais”, e ao final, não prenderem ninguém. “Há suspeitas que caíram sobre filhos de autoridades e, então, desviaram do assunto.”

Diante da ineficácia do Estado, a sociedade, conforme avalia a pesquisadora, passou a santificar essas crianças violentadas e mortas. “Aqui em Brasília, há uma fila de pessoas com presentes para chegar ao túmulo de Ana Lídia. A sacralização dessas meninas mortas acaba servindo à lógica de silenciamento”. No entender da pesquisadora, quando se constrói a imagem de “santa”, a estrutura de impunidade pode ganhar espaço.

Veja também

Ucrânia pede sistemas de defesa para enfrentar novos mísseis russos
Ucrânia

Ucrânia pede sistemas de defesa para enfrentar novos mísseis russos

Hospitais de Gaza em risco por falta de combustível
Gaza

Hospitais de Gaza em risco por falta de combustível

Newsletter