Opinião

Atraso de tempo na Espanha: a extensão da cultura do ódio e a juventude racista

Poetas da nossa MPB, como Aldir e Caetano, renderam-se à contundência de um tempo que, evidentemente, marca e está sempre presente. E sobre essa condição, chegaram até a falar dele com toda suavidade peculiar a um romance, em versos estilizados. Aldir procurou "resposta para o tempo", justo o que "bate na porta, sorri, zomba, porque sabe passar e o autor não". Já Caetano disse que ele é "tão bonito quanto o filho, uma espécie de compositor de destinos e tambor de todos os ritmos". Portanto, o tempo é um certo ser implacável, "de movimento preciso". Eis a síntese das minhas melhores maneiras de enxergar esse tal senhor do destino.

No entanto, não consigo ter uma percepção igual quando ponho meu olhar para a Espanha, justo um país que sempre  trouxe para mim muita admiração. Por que será, então, que os pilares da sociedade espanhola estão tão carcomidos pela ação do tempo? Por que o lado cruel desse mesmo tempo tem exposto as feridas  de uma dissimulação social tão profunda, quando o assunto é racismo e xenofobia? Para onde foram os poetas e cronistas espanhóis, que não me redimem agora da velha esperança de ver mais justiça na ação do tempo?

De fato, os roteiros do racismo e da xenofobia hoje tão contagiantes nas terras de Cervantes, talvez não fossem antes expostos ao limite, porque a dissimulação sobre o esconder os problemas por baixo dos tapetes castelares, só veio ao auge agora. Assim, com muito atraso. É bom que saibam os poetas de lá, sobre a extensão desse tempo que tanto se retardou. Pelo visto, no ambiente exacerbado e extremado de hoje, essa dureza está mais para o realismo de Sancho Pança do que a utopia de Dom Quixote. Para que eu não perca minha ternura literária pelos escritos "castellanos".

Dois aspectos me levam a crer na chegada de um tempo que se sustenta numa cultura do ódio frequente e na projeção de uma juventude racista latente, leniente e renitente. Explicarei cada uma.

Em primeiro plano, destaco o porquê dessa situação me levar a crer que, a insistência por atentados odiosos e racistas contra Vini Junior, tem tudo a ver com um roteiro construído pela sociedade espanhola há muitos anos. Não se tratou de algo pontual, de algum modo derivado de uma circunstância conjuntural. Ao contrário, tratou-se de uma questão estrutural arraigada aos valores de parte de uma sociedade  raivosa. Justo a que enxerga no atleta do Real Madri um repositório dantesco para justificar intolerâncias. Afinal, há um esforço perverso de eugenia, em nome de uma supremacia branca, capaz de inocomodar quem preza pelo humanismo e pela justiça. Vini incomoda: como preto natural e talento sobrenatural.

Em segundo plano, tão ou mais preocupante que esse padrão  estrutural é o registro do fato de uma pesquisa recente apontar que, 25% dos jovens espanhóis, resolveram assumir abertamente sua ideologia racista e xenófoba. A fonte que confirma essa conduta abusiva, dentro do que chamo de "novos tempos bárbaros", advém de um estudo recente (2022), divulgado pelo Centro de Juventude e Adolescência Rainha Sofia. Na intenção de atualizar seu compromisso estatutário, de focar em análises multidisciplinares sobre conceitos socioculturais dessa faixa etária da população, nada foi mais preocupante do que a constatação de jovens entre 15 e 29 anos, que exercem seus preconceitos, sem o.menor pudor. Uma percepção crescente, porque a Espanha tem sido campo fértil para a impunidade e a propagação de ideias extremas, que se difundem a partir de um velho e inquietante testamento franquista. E o futebol espanhol ainda acolhe esse retrocesso ideológico, por conta dos vínculos politicos de alguns clubes desconectados com os valores da democracia e da diversidade.

Esses padrões comportamentais apenas reforçam o que sofreu o ex-jogador espanhol, basco, de afrodescendência angolana, Thaylor Lubazadio. As ofensas racistas dirigidas a ele (há 6 anos e num jogo da série B do campeonato), num tratamento insistente que lhe impunha gritos de  "puto negro", não calaram sua reação de protesto, mas não lhe serviram de nada. Surpreenderam as respostas que vieram, na forma de um arquivamento absurdo do processo e, pior que isso, de uma suspensão estúpida imposta ao próprio atleta. Ou seja, o racismo estrutural chega ao ponto de inverter a ordem natural, no sentido de vitimizar os agressores. Exatamente o que tentou o presidente da "La Liga", não fosse o risco de perder dos patrocinadores "las platas" cobiçadas. 

Uma lástima que essa situação tenha deixado a nação espanhola nua, tal e qual a fábula dinamarquesa de Andersen, sobre as roupas do rei. Assim, tão exposta ao juízo dos que já perceberam os efeitos deletérios de uma sociedade, secularmente, contaminada pelo preconceito. O grito abolicionista de Vini, em defesa dos direitos daqueles que sofrem, diariamente, com o racismo e a xenofobia, propicia uma oportunidade ímpar  Aquela que cabe a uma sociedade cristã na sua maior expressão, diante da remissão de todos seus pecados. 

O momento para isso me parece complexo. Mas, em nome do significado de uma humanização que se pretende restaurar, é  preciso mudar. Um outro tempo se impõe e pede passagem. Pelo bem da Espanha. Por um outro mundo de convivências mais humanas.


*Economista e colunista da 
Folha de Pernambuco

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