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Ausência do Estado na Muzema e no Jacarezinho reflete em bairros vizinhos

Abandono do Estado nas duas comunidades agravou vulnerabilidades que vão muito além da segurança pública

Polícia do Rio durante ação no JacarezinhoPolícia do Rio durante ação no Jacarezinho - Foto: Mauro Pimentel/AFP

Jacarezinho e Muzema, primeiras comunidades a receber o programa Cidade Integrada, do governo do Rio, têm históricos de ocupação bem diferentes: a da Zona Norte remonta à primeira metade do século passado, com a expansão impulsionada pela industrialização do entorno; e a da Zona Oeste explodiu, de fato, nas últimas décadas, nas franjas de uma Barra da Tijuca geradora de empregos e com a voracidade do mercado imobiliário ilegal das milícias.

Em ambas, o abandono do Estado agravou vulnerabilidades que vão muito além da segurança pública e que, se afetam intrinsecamente a vida de seus moradores, geram consequências que extrapolam os limites das duas favelas, em processos (distintos, é verdade) que refletem nos bairros vizinho.

Agora, se promete, novamente, reverter esse quadro. Em coletiva ontem, o governador Cláudio Castro anunciou que as primeiras intervenções nas comunidades serão em saneamento e limpeza de rios. E disse que o programa só será estendido a outras comunidades quando estiverem comprovados resultados nos dois territórios iniciais do projeto. Dentro e fora das duas favelas, expectativas e uma certa descrença se misturam.


É o que ocorre em Higienópolis, bairro perto do Jacarezinho que já foi conhecido como “Pérola da Leopoldina”, com suas casas amplas e vistosas. Hoje, não escapa de uma desvalorização que atinge também áreas próximas, como Maria da Graça, onde os moradores, nos últimos anos, viram a formação de cracolândias e se perceberam acuados pela violência — que nem de longe, no entanto, se parece com a presença do tráfico armado e com as incursões da polícia impostas a quem vive na favela. Ali, são os assaltos que mais intimidam, como o vivido pela família do arquiteto Luiz Henrique Carvalho, de 46 anos:

"Minha mãe foi feita de refém em casa. Tivemos que instalar câmeras e rede de arame farpado. É triste ver vizinhos e amigos de uma vida indo embora por conta da violência". Enquanto isso, os anúncios de venda de imóveis se multiplicam. Na Rua Santa Mariana, há alguns que permanecem expostos há cinco anos.

"Essa casa está desde 2016 à venda. O preço caiu 20%, e ninguém quer. Além do mais, a região sofre com alagamentos. Vivemos uma decadência profunda  ", diz o pedreiro Adailton Alves, de 55 anos.

Uma amostra do que ele relata se revela no mercado imobiliário. Levantamento do Secovi Rio aponta que, entre o fim de 2012 e o de 2014, Higienópolis, Maria da Graça, Rocha, Cachambi e Del Castilho, todos bairros próximos ao Jacarezinho, experimentaram um aumento do valor do metro quadrado ofertado para a venda de imóveis residenciais.

Nesse período, em janeiro de 2013, foi instalada a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Jacarezinho. Em Maria da Graça, ocorreu o maior salto: de R$ 3.336 o metro quadrado, em dezembro de 2012, para R$ 5.277, em dezembro de 2014 (aumento de 58%).

A partir daí, no entanto, quando o projeto de segurança já dava sinais de que faria água, os preços voltaram a cair, numa trajetória que se manteve até 2019. Na análise da Zona Norte e da cidade como um todo, por sua vez, o Secovi aponta que o crescimento se manteve mais tempo, até 2016.

Dentro da favela, moradores dizem que não ficaram nem sombras de qualquer legado social da UPP. Também há frustração quanto aos resultados do Favela Bairro e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Um desapontamento que, em parte, ajuda a explicar porque muitos estão incrédulos quanto à chegada do Cidade Integrada, diz a ativista C., ligada aos movimentos sociais locais, que prefere não se identificar. E essa decisão de não revelar o nome tem motivo:

"Vivemos em pânico porque não sabemos o que vai acontecer. Quem está na favela é a elite da polícia, meses depois de uma chacina (que deixou 28 mortos) em maio de 2021". 

A ativista ainda se lembra de quando, nos fins de tarde, tocavam as sirenes das indústrias da região, e a favela ficava cheia de trabalhadores com seus uniformes coloridos. A antiga fábrica de lâmpadas da GE era uma das maiores. Mas também havia produção têxtil, de velas, de café... Foi tudo sendo fechado, numa debandada intensificada entre os anos 1990 e 2000.

"Essas fábricas movimentavam o comércio e geravam empregos. Quando vão embora, há um empobrecimento da comunidade. Hoje, são poucas as oportunidades para os jovens perto da favela. Muitos acabaram se tornando os “nem nem”, que não trabalham nem estudam. Escola pública, aliás, é velha reivindicação. Não há uma escola dentro da favela. As mais próximas ficam na Avenida Dom Helder Câmara e em Manguinhos".

Saneamento e obras de prevenção às enchentes são outras reivindicações que nunca foram plenamente atendidas. Em vez de melhorar, a situação vem piorando nos últimos anos, com a saída da favela de instituições como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), transferido do local nos anos 2000, sob a alegação do aumento da violência.

Vários indicadores sociais deixam claro o tamanho do desafio. Relatórios do Programa Territórios Sociais, do município, mostram que dezenas de famílias não têm geladeira, chuveiro ou fogão a gás no Jacarezinho. Os dados do Índice de Progresso Social (IPS) jogam luz em outras vulnerabilidades. No mais recente, lançado em 2021, referente a 2020, a Região Administrativa (RA) do Jacarezinho tinha o quinto pior índice (45,15) entre as 32 RAs da cidade, à frente, por exemplo, do Complexo do Alemão e da região da Pavuna.

No entanto, ao se focar nos 36 indicadores que compõem o índice, o Jacarezinho aparece em último em quase uma dezena deles. São da comunidade os maiores índices de mortalidade na infância, gravidez na adolescência e trabalho infantil. O Jacarezinho também fica com a pior qualidade do ensino nos anos iniciais do ensino fundamental e a menor proporção da população com acesso a telefone celular ou fixo e à internet, e de pessoas com ensino superior. Assim como está ali o pior índice de acesso à cultura e o maior adensamento populacional excessivo do Rio.

Já na Muzema, a oferta de apartamentos à venda por R$ 300 mil, em prédios que prometem até câmeras de segurança, não eliminou problemas como deficiências na coleta de lixo. É uma comunidade com crescimento vertical, explorado pelas milícias, vizinha de condomínios de luxo do Itanhangá, onde os ecos do crescimento dessa e de outras favelas também são percebidos. Um funcionário de um condomínio conta que, há cinco anos, alguns moradores cogitaram deixar o bairro: temiam a cobrança de taxas, uma marca de áreas de milícia:

"Houve um movimento de algumas pessoas para irem embora. A gente sempre vê no noticiário que essas áreas de milícia acabam virando regiões de confrontos. Ninguém ia querer viver num lugar assim".

Ao detalhar ontem as ações do Cidade Integrada, iniciado esta semana com a ocupação policial nas comunidades do Jacarezinho e da Muzema, o governador Cláudio Castro disse que o programa é divido em seis eixos: social, infraestrutura, transparência, economia, diálogo/governança e segurança, que ficarão restritos a essas duas favelas até que tudo esteja “funcionando plenamente” com resultados. Castro afirmou ainda que o programa do seu governo em nada lembra o das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

"Esse programa nada tem a ver com a UPP, não é um plano de pacificação. Após muitas análises e conversas com quem estava naquela época, percebeu-se que a ideia de pacificação traz mais prejuízos do que benefícios. Esse projeto atual é de retomada do território e de entrega para quem, de fato, ele pertence", disse Castro que é pré-candidato à reeleição ao cargo de governador.

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Entre as promessas para o programa, que foi orçado em R$ 500 milhões, estão obras de saneamento, limpeza de rios e a reforma da Escola Luiz Carlos da Vila, na Avenida Dom Helder Câmara, nas imediações do Jacarezinho e de Manguinhos, que começam a partir de amanhã. Além disso, são previstas ações para a emissão de documentos, entrega de títulos de propriedade e criação de um batalhão da PM.

Mas há pontos que ainda precisam ser detalhados, como o auxílio às mulheres chefes de família, ainda sem critério de seleção, e o voucher para compra de botijões de gás, sobre o qual não foram divulgados o valor nem a forma como será distribuído.

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A maior parte dos recursos desta fase do Cidade Integrada, diz Castro, estava prevista no orçamento do estado. O plano inclui ainda um programa de castração de animais e uma linha de crédito, oriunda do SuperaRJ, criado pelo governo estadual para auxiliar famílias de baixa renda ou quem perdeu o emprego na pandemia.

"Enquanto (o plano) não estiver funcionando plenamente e dando resultados para as comunidades, não há sequer prazo para as próximas (implementações em outras favelas)", disse o governador, que, em respostas a uma manifestação ontem horas depois do anúncio, afirmou no Twitter que o protesto foi realizado por uma parte da população, segundo ele, manipulada pelos traficantes.

A lista de ações previstas inclui ainda o “Desenvolve Mulher”, voltado diretamente para 2 mil chefes de família, de 16 a 30 anos, tendo como diretriz a capacitação e o incentivo ao empreendedorismo. Ele será instalado em fevereiro, com custo de R$ 34,5 milhões. Já o “De Bem com a Vida” terá foco nos idosos, com cuidado para a saúde mental e física, e previsão de investimentos de R$ 2 milhões, com início em fevereiro.

Estudantes terão o Centro da Juventude, com programa de desenvolvimento de jogos “Vem pro Game” e cursos para a inclusão digital. Já o esporte ficará em núcleos para até 150 alunos.

Na área econômica, as comunidades terão agências do AgeRio, voltadas a investimentos para empreendedorismo. Será disponibilizada uma linha de crédito de R$ 30 milhões, com “burocracia zero”. O plano também prevê um estudo, a ser apresentado em 30 dias, de estímulos locais, como regularização de serviços de TV e internet.

"Sabemos que um dos problemas nas comunidades é a agiotagem, onde criminosos se utilizam da vulnerabilidade da população para prestar esse serviço, com práticas agressivas", diz Castro.

Além disso, Jacarezinho e Muzema terão mercados produtores, com hortifrutis e preços acessíveis. O projeto está em fase final de licitação. O governo planeja ainda investir em melhorias de até R$ 15 mil nas estruturas de residências, principalmente na construção de banheiros.

Sobre o programa “Casa Legal” , específico para a comunidade da Muzema, que prevê, a partir deste mês, a entrega de títulos de propriedade a moradores da região, o governador afirmou que o sucesso do projeto será a forma de evitar que milicianos voltem à região:

"Vamos nos reunir para ir ao Judiciário e resolver essas questões o mais rápido possível. Vou conversar com o Ministério Público e a Defensoria. Os cartórios também estarão na força-tarefa. Além disso, o Tribunal de Justiça do Rio levará o projeto “Justiça Itinerante” para resolver demandas de forma rápida".

Castro destacou que o programa terá diálogo constante:

"É um dos pilares para o sucesso. O governo está de ouvidos abertos . Sem diálogo, esse plano viraria uma imposição. A verdadeira integração é a sociedade participando".

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