Autismo na vida adulta: como identificar e quais os tratamentos indicados nesta fase
Segundo especialistas, tem crescido o número de adultos diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista
No último fim de semana, a Folha de Pernambuco trouxe em sua reportagem especial os dados mais recentes sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA), que inclui o aumento de diagnóstico em crianças de até oito anos de idade nos Estados Unidos e que indica que o TEA atinge entre 1% e 2% da população mundial, o que, trazendo para o Brasil, alcançaria aproximadamente dois milhões de pessoas.
Dando sequência à série de reportagens sobre autismo, a reportagem deste sábado (8) busca se aprofundar nas questões que envolvem o espectro na vida adulta. Afinal, existem adultos com autismo? É possível identificar o TEA já nesta fase da vida?
A resposta é sim para ambas as perguntas. Inclusive porque a neurodivergência é algo inerente à pessoa, você já nasce dentro do espectro autista, não é algo que se adquire com o tempo, apesar de muitas vezes o diagnóstico vir a ocorrer de forma tardia.
“Nos últimos anos, é cada vez mais frequente um diagnóstico em adultos. Isso está acontecendo por uma questão de conscientização e com a propagação de informação e porque os próprios adultos e adolescentes mais tardios têm percebido os sintomas, têm se identificado com os sintomas e têm procurado atendimento. Normalmente, eles se identificam porque têm muitos desses sintomas que a gente não consegue ver, a gente só consegue sentir. Então, quem está de fora não consegue perceber tão facilmente”, explicou a psiquiatra Rosa Magaly Morais, médica do Programa do Transtorno do Espectro do Autismo (PROTEA), desenvolvido pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
“Esses sintomas envolvem desde os sintomas mais típicos do TEA, que a gente fala de uma maneira geral, que são observados na primeira infância, então um atraso na comunicação social, um padrão de comportamentos mais restritos, mais repetitivos, e aqueles sinais que são típicos do TEA, dificuldade de olhar no olho, dificuldade de responder ao nome, dificuldade em compartilhar atenção”, continuou.
Mas, quando falamos em autismo, orienta a especialista, é preciso ter em mente que apesar de alguns sintomas comuns, cada indivíduo possui suas próprias características.
“O autismo é muito heterogêneo, então a gente tanto pode falar sobre adultos com autismo que têm um autismo nível de suporte 2 e 3, que são aqueles pacientes, aqueles indivíduos, que têm o autismo mais grave, que custam alterações de comportamento bem importantes, muitas vezes com a deficiência intelectual, com ausência de fala, e que mesmo que não tenham nomes de autismo na infância, mas de alguma forma eles já foram identificados com essas alterações de desenvolvimento, já foram identificados ao longo da vida.”
Em contrapartida, também é grande o número de pessoas com autismo considerado leve confirmando o diagnóstico já adultas.
“Mas tem também o outro lado, que são aqueles indivíduos que têm um autismo leve, com inteligência preservada, e que muitas vezes ao longo da vida vão desenvolvendo estratégias para se adaptar, eles vão copiando comportamento, camuflando a forma de funcionar e passam despercebidos. Qual é a grande questão nisso? É que eles pagam um preço muito alto. Essa exigência, essa exposição social, essa exposição sensorial, é muitas vezes uma uma via sacra que eles fazem nos especialista para poder ter vários outros diagnósticos psiquiátricos até chegar no TEA e traz muitos sintomas depressivos, traz muitos sintomas ansiosos”.
O diagnóstico é realizado a partir de uma série de análises clínicas que envolvem, especialmente, psiquiatras e neuropsicólogos. Com a confirmação do TEA - que muitas vezes pode estar associado a comorbidades como ansiedade, depressão, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) - e o acompanhamento individualizado do paciente, é possível indicar terapias e tratamentos que podem auxiliar no desenvolvimento de habilidades, na adaptação de comportamentos e, consequentemente, na qualidade de vida.
As intervenções costumam ocorrer de forma multidisciplinar e incluem, por exemplo, práticas da teoria comportamental, treino de habilidade social e terapia cognitivo-comportamental.
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O objetivo, no entanto, alerta Rosa Morais, não é buscar que pessoas dentro do espectro passem a executar atividades exatamente como pessoas neurotípicas, mas, sim, permitir que elas desenvolvam comportamentos capazes de auxiliar o seu dia a dia.
“É possível você desenvolver e refinar competências, você aprender determinados comportamentos. Até um determinado momento, até um determinado limite, as pessoas que têm TEA precisam aprender, ou desenvolver, essas competências e habilidades sociais para que elas, inclusive, tenham uma qualidade de vida e sofram menos. Mas por outro lado é importante a gente entender que a ideia dessas intervenções não é normalizar. Têm determinadas características que são características típicas do Transtorno do Espectro do Autismo, que fazem parte de uma diversidade, que muitas vezes podem ser interessantes. São essas diversidades que fazem com que a gente cresça e que eles não precisam ter que mudar, a gente também precisa respeitar isso. A gente também precisa aprender que a intervenção vem para ajudar, mas que a gente não quer normalizar ninguém, porque não tem ninguém aqui que seja parâmetro de verdade e que sirva para todo mundo”.
O neuropsicólogo Mayck Hartwig, 33, fundou, em 2019, a plataforma de soluções em saúde mental Adultos no Espectro, que oferece serviços a preços acessíveis para adultos com autismo, seus familiares e profissionais da área de saúde.
Ao lado da amiga e cofundadora Ilus, 43, artista e dentro do espectro autista, ele compartilha informações sobre o tema na página da plataforma no Instagram, que hoje soma 24 mil seguidores.
“O perfil foi criado em 2019, e tínhamos como objetivo fazer divulgação científica sobre TEA na vida adulta. Eu sou pesquisador de doutorado, então utilizava a página para compartilhar o que estava estudando na ocasião. A Ilus é artista e autista, ela recebeu o diagnóstico de autismo naquela ocasião e passamos a trocar muitas figurinhas sobre o tema. Foi quando decidimos que ela passaria a coordenar um quadro que temos no perfil, chamado ‘História de Adultos no Espectro’, onde convidamos pessoas autistas adultas para contarem sua história de vida”, comentou.
Entre os serviços oferecidos pela plataforma estão os grupos de apoio para adultos com TEA.
“Entendemos que encontros coletivos são importantes oportunidades de ampliar o círculo social, compartilhar vivências relativas ao ser autista e desenvolver um senso de humanidade compartilhada, que é entender que nunca se está só, existem outras pessoas que passam por situações parecidas e, se tiverem o suporte adequado podem desenvolver estratégias de enfrentamento mais eficazes e exercer suas capacidades de maneira mais plena”, ressaltou o neuropsicólogo.
O músico Sávio Santoro, 48, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), recebeu o diagnóstico do espectro em 2021. Desde a infância, as dificuldades de convívio social sempre lhe acompanharam.
Para ele, inclusive, os primeiros momentos de interação com alguém desconhecido configurava o que classifica como tortura e pânico.
“Na hora do colégio eu via todo mundo brincando e eu sempre na minha, ficava no meu cantinho. Eu fui apelidado de tudo por ser justamente quieto e ter dificuldade de me expressar. Minha voz tremia, dava branco quando eu falava, e ainda é frequente eu pedir para as pessoas repetirem por eu simplesmente não entender o que elas diziam, por mais claro que fosse. E eu fui carregando a questão da inibição por muito tempo, como se fosse inibição, na verdade”, disse.
Com prejuízo também da capacidade motora, já que a ansiedade extrema refletia em um tremor nas mãos que o impedia de tocar a viola em apresentações solo, iniciou o uso de medicamentos com o acompanhamento médico. A confirmação do autismo funcionou como uma espécie de libertação.
“Eu me libertei de uma cobrança minha de todo um passado. O Sávio que era o diferente, que se punia por estar no sábado à noite em casa quando todo mundo se divertia. Foi uma libertação para mim”, contou.
Também músico e professor da UFPE, Pedro Huff, 46, descobriu o autismo de nível leve em 2022.
“Eu sempre tive um dilema na minha vida, que eu me achava diferente das outras pessoas, que eu me achava muito mais inteligente para algumas coisas e muito mais travado para algumas outras coisas. E eu tinha muita dificuldade de relacionamento, não entendia por que as pessoas às vezes não queriam falar comigo, ou ficavam estranhas comigo e eu não sabia o porquê. Eu não sabia por que as pessoas não gostavam de mim, ou por que gostavam. Eu não entendia flerte por exemplo”, lembrou.
Após o laudo da neurodivergência, avalia, a autocobrança diminuiu e o autoconhecimento aumentou.
“Eu me dou uma colher de chá para muitas coisas. Antigamente eu me obrigava a ir nos shows, porque sou músico. E aí eu entendi que eu tenho que ter um protetor auricular porque eu sou muito sensível a ruído. Eu descobri que eu não posso beber também, porque eu fico muito ansioso no dia seguinte. Fiquei lembrando dos momentos que eu ficava triste e que na verdade era exaustão. Tenho muita sensibilidade de cheiro, de tato, todos os sentidos ficam muito mais sensíveis.”