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Bactéria da sífilis já estava no Brasil quando portugueses chegaram, mostra estudo

Cientistas encontraram DNA do micróbio em ossos humanos de 2 mil anos achados em Santa Catarina; população local tinha variante não-venérea da doença

Fragmentos de ossos com 2.000 anos encontrados no sambaqui Jabuticabeira II, em Santa Catarina, tinha a bactéria Treponema pallidum, causadora da sífilis Fragmentos de ossos com 2.000 anos encontrados no sambaqui Jabuticabeira II, em Santa Catarina, tinha a bactéria Treponema pallidum, causadora da sífilis  - Foto: José Filippini/USP/divulgação

Há mais de 500 anos europeus chegaram às Américas e espalharam diversas doenças entre os indígenas, acelerando o processo de genocídio ocorrido em sequência. Uma das enfermidades presentes nesse contato, porém, — a sífilis — possivelmente fez o caminho inverso, indo do Novo para o Velho Mundo, e um novo estudo genético reforça essa hipótese.

No trabalho, cientistas descrevem como conseguiram encontrar DNA da bactéria Treponema pallidus, causadora da doença, em ossos de mais de 2.000 anos achados num sítio arqueológico em Santa Catarina. Liderado por cientistas europeus, o trabalho teve participação de um grupo da Universidade de São Paulo (USP), e sai hoje na revista Nature.

Como os primeiros registros históricos de sífilis na Europa datam do fim do século 15 (logo após o retorno de Cristóvão Colombo à Espanha), pesquisadores já consideravam a hipótese de que a doença emergiu no Novo Mundo. Não havia até agora, porém, uma prova direta de que a Treponema já estava aqui. Essa evidência surge agora com o trabalho brasileiro-europeu.

A descoberta é fruto de um processo longo de pesquisa no Brasil, que começou com a exploração de um sítio arqueológico às margens da Lagoa do Camacho, em Santa Catarina. O local, batizado como Jabuticabeira II, é um sambaqui, formação criada a partir da deposição humana de materiais orgânicos e calcários, principalmente conchas e ossos, ao longo de séculos. Algumas populações faziam ali seus sepultamentos, em rituais complexos.

Trabalhando em Jabuticabeira II desde os anos 1990, cientistas da USP desenterraram vários fragmentos de ossos humanos que ajudam hoje a entender quem era essa população, batizada de sambaquianos. Alguns ossos geraram curiosidade específica porque tinham marcas e deformidades que sugeriam a presença de doenças.

Os cientistas da USP José Fillipini e Sabine Eggers iniciaram então uma colaboração com colegas europeus, que tinham expertise em trabalhar com DNA antigo, para saber que tipo de parasitas poderiam ter contaminado os sambaquianos. A geneticista Verena Schünemann, da Universidade de Zurique (Suíça), conseguiu finalmente identificar DNA de Treponema num fragmento de osso, após fazer a triagem de uma centena de amostras.

"Agora a gente sabe com certeza que, 2 mil anos atrás, as pessoas que foram sepultadas em Jabuticabeira tinham essa sífilis endêmica" diz Eggers.

Usando uma técnica de análise chamada relógio molecular, que mede a taxa de mutações genéticas ao longo do tempo, os cientistas compararam o DNA da bactéria achada ali com amostras mais recentes. A partir daí conseguiram uma noção melhor de quão antigas são a sífilis e outras doenças causadas pela Treponema.

"Elas são mais antigas do que a chegada de Colombo às Américas, mas pode também ser 'super antiga', tão velhas quanto a entrada do homem nas Américas, há mais de 12 mil anos" diz a pesquisadora, que se mudou recentemente da USP para o Museu de História Natural de Viena (Áustria).

Quebra-cabeça genético
A descoberta da Treponema em um sambaqui brasileiro, porém, não fecha completamente o quebra-cabeça sobre a trajetória da doença, ainda dificultado por um detalhe. A variante da bactéria que foi achada em solo catarinense não era aquela que causa a sífilis comum venérea, sexualmente transmissível.

A subespécie do micróbio encontrada no sambaqui foi aquela causadora da bejel, uma versão não-venérea da sífilis que está mais presente em países do Oriente Médio, transmitindo-se por contato de mãos ou pele. Não é possível, ainda, afirmar categoricamente que a sífilis venérea já estava nas Américas naquela época.

Pelas contas do relógio molecular, cientistas acreditam que as duas formas de sífilis já estavam bem diferenciadas no século 15, mas não é possível dizer se toda essa família de doenças, que ainda tem mais duas variantes, emergiu antes ou depois da chegada do primeiro humano às Américas. Há hoje uma outra treponematose não-venérea que afeta humanos, a bouba, presente sobretudo na África subsaariana.

Essa presença global das bactérias hoje dificulta o estudo de sua origem. Há registros antigos de Treponema também no México, mas por enquanto eles não ajudam a elucidar todo o problema.

"Essas amostras mexicanas são da época colonial, por volta do século 17, portanto muito mais novas. E elas representam diferentes subespécies, das linhagens causadoras de sífilis venérea e da bouba, então não é possível conectá-las com as descobertas mais recentes" explica Schünemann.

A cientista conta que identificar o genoma da bactéria em laboratório foi extremamente desafiador, porque as moléculas de DNA estavam muito fragmentadas após terem se degradado por séculos. De uma centena de fragmentos ósseos analisados, havia um único com DNA da bactéria bem preservado, que serviu de base para achar o micróbio também em outros.

O estudo dos pesquisadores brasileiros e europeus não resulta, por enquanto, em nenhuma aplicação médica para tratar ou prevenir a sífilis. A doença, que pode evoluir de um cancro genital para formas graves afetando o sistema nervoso e diversos órgãos, possui tratamento.

O trabalho liderado por Schünemann, porém, joga luz sobre a natureza da doença em um momento preocupante, quando a Treponema está começando adquirir mais resistência contra antibióticos. Entender como esse microorganismo evoluiu em contato com humanos pode vir a ser uma informação valiosa para combatê-lo no futuro.

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