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RIO DE JANEIRO

Barricadas do tráfico e da milícia se multiplicam, tomam favelas e bairros e já aparecem até em mapa

Há mais de 40 barreiras do crime listadas pelo Maps na Região Metropolitana fluminense

Tiroteio na Avenida BrasilTiroteio na Avenida Brasil - Foto: X/reprodução

Na Rua Beira Rio, em Manguinhos, ela é classificada como “marco histórico”. Na Rua Curuira, em Vicente de Carvalho, o rótulo é “marco cultural”. Já na Iguaperiba, em Brás de Pina, está registrada como “atração turística”.

Em todos os casos, as marcações, feitas por internautas no Google Maps — serviço da gigante de buscas usado como instrumento de geolocalização e aplicativo de trânsito —, se referem às barricadas instaladas nas vias do Rio por traficantes para dificultar o acesso da polícia.

Numa busca rápida, há mais de 40 barreiras do crime listadas pelo Maps na Região Metropolitana fluminense. É um testemunho digital do tamanho das áreas sob domínio das facções, do risco que correm moradores e motoristas e de como esses entraves ao direito de ir e vir se multiplicam em favelas e bairros formais.

Em alguns lugares, imagens do Google Street View — que oferece vista em 360° de ruas e avenidas — também mostram os bloqueios. Em outros, foram anexadas na ferramenta fotos dos obstáculos: é o caso da Estrada do Rio Grande, na Taquara, Zona Oeste, onde troncos e pneus atravancam a passagem.

A “máquina do tempo” do Street View também revela a instalação de barricadas em diversos pontos. Um exemplo é o entorno da comunidade Cinco Bocas, em Brás de Pina, parte do Complexo de Israel. Na esquina da Avenida Schultz Wenk com a Rua Taborari, nas três passagens do serviço do Google (2010, 2011 e 2013) não havia barreiras do crime. Mas, em 2018 e 2019 — últimas passagens do serviço pelo local —, os obstáculos são flagrados pelas câmeras.

Medo e insegurança
A região do Complexo de Israel é justamente a que, na semana passada, esteve no centro do confronto que deixou três mortos, espalhou caos pelo Rio e interditou a Avenida Brasil. A polícia sustenta que traficantes chefiados por Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, atiraram deliberadamente em veículos que passavam pela via, numa ação que o governador Cláudio Castro chamou de “ato de terrorismo”.

Na área controlada pelo bando, uma das táticas dos criminosos é abrir grandes valas que atravessam as ruas para impedir o tráfego de veículos. Numa operação no último dia 10 de outubro, um blindado da polícia chegou a encalhar num desses fossos, em Vigário Geral.

Por ali e em grande parte da Zona Norte do Rio, não é preciso estar conectado à internet para se dar conta da realidade concreta dos bloqueios do tráfico, até mesmo em áreas residenciais fora das favelas. Em Brás de Pina, uma moradora que pediu para não ser identificada compartilha o temor que tomou conta do bairro onde fica parte do Complexo de Israel:

— Meu filho tem 10 anos, e eu não o deixo mais brincar na rua. Minha rua nunca teve barricada. Mas, agora, elas estão por todos os lados. Estamos com medo de sair. Não podemos falar nada e, se a gente denuncia ou chama a polícia, vira alvo desses criminosos. A sensação que dá é que estamos encurralados.

Maria do Rosário (nome fictício), moradora da Vila da Penha há 45 anos, descreve o impacto em seu bairro. Ela diz que, desde o ano passado, traficantes começaram a impor horários de fechamento e abertura das barreiras.

— Durante o dia, abrem as barricadas para a gente ir trabalhar ou para as crianças irem à escola. Mas, à noite, eles fecham e limitam a passagem. Se a gente quiser chamar um carro de aplicativo, precisa descer bem antes e caminhar até em casa. Somos prisioneiros do tráfico. Vivemos reféns desses criminosos que se acham donos das nossas casas, do comércio e das ruas — desabafa a diarista.

A insegurança também afeta motoristas de aplicativo como Cláudio Assis, de 48 anos, que desistiu da profissão após um episódio traumático. Ele conta que, há dois meses, entrou por engano numa rua bloqueada por uma barricada perto da Avenida Pastor Martin Luther King e foi ameaçado por um traficante armado.

— O traficante apontou o fuzil para a janela do meu carro e disse: “Se avançar, vai morrer”. Naquele momento, só conseguia pensar no meu filho de 5 anos. Foi a última vez que trabalhei como motorista de aplicativo — revela ele, que decidiu voltar à antiga profissão de mecânico. — Não é fácil andar pelo Rio, seja de carro ou a pé. O que antes parecia ser apenas uma rua comum de um bairro do subúrbio agora se tornou território de guerra do tráfico.

Sobre o uso do Google Maps pelos internautas para marcar onde estão as barricada no Rio, Fabro Stibel, diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), acredita que essa seja uma resposta dos moradores à violência. Ele afirma que, diante da impossibilidade de o carro do Google percorrer áreas dominadas pelo tráfico, os próprios habitantes assumiram o papel de mapeadores:

— O Google Maps está sendo usado com o mesmo propósito das barricadas: informar quem entra ou sai de determinado local. As pessoas estão se apropriando da tecnologia para atender às suas necessidades.

O Google não quis se manifestar sobre o tema.

Responsabilidade
Já o secretário estadual de Segurança Pública, Victor Santos, afirma que a remoção de barricadas tem sido um dos principais focos da polícia, mas ressalta que essa não deveria ser uma responsabilidade exclusiva das forças estaduais:

— A polícia retira as barricadas, mas os traficantes as recolocam mais para dentro da comunidade. Em alguns lugares, estão até usando caçambas de lixo. O Comando Vermelho está expandindo esse sistema para outros estados, como Bahia e Minas Gerais. A disputa territorial gera receita para os criminosos, mas o Estado é o dono do território. Não podemos deixar que partes do Rio fiquem fora de controle.

Para o professor e sociólogo Daniel Hirata, da Universidade Federal Fluminense (UFF), a retirada das barricadas é uma medida paliativa:

— A polícia está apenas enxugando gelo. As barricadas são um reflexo do controle territorial armado, que envolve dimensões políticas e econômicas. Enquanto o controle não for resolvido, as barricadas continuarão.

A tenente-coronel Cláudia Moraes, porta-voz da PM, afirma que a corporação atua diariamente na remoção de barricadas, muitas delas bem estruturadas e construídas em alvenaria. Ela destaca que a polícia tem investido em novas tecnologias, como retroescavadeiras blindadas e caminhões, para melhorar a eficiência na remoção desses obstáculos:

— Mesmo que os traficantes reinstalem as barricadas, nosso trabalho é retirá-las. O uso dessas máquinas blindadas é um avanço importante.

Em 2022, a PM investiu R$ 11 milhões na aquisição de cinco “kits de demolição”. Segundo a corporação, de janeiro a setembro deste ano foram removidas 5.709 barreiras no estado, um aumento de 50% em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram desmobilizados 3.804 bloqueios.

— As barricadas servem para dificultar investidas da polícia e de grupos rivais, mas, acima de tudo, são um símbolo de controle territorial, delimitando áreas dominadas pelo tráfico ou pela milícia. O uso do Google Maps faz sentido para aqueles que querem evitar essas áreas, mas os moradores dessas localidades não têm como fugir dessas barreiras. Eles vivem diariamente sob o controle dos grupos armados, e o Estado precisa agir — alerta a antropóloga Elizabete Albernaz, do Laboratório de Estudos sobre Conflito, Cidadania e Segurança Pública (Laesp) da UFF.

— Sem atacar as raízes políticas e econômicas que sustentam o controle territorial, esses obstáculos continuarão a ser reinstalados.

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