Biden segue Trump e bloqueia órgão que resolve disputas na OMC
O governo de Joe Biden tem mantido uma política tocada pelo antecessor, Donald Trump, de bloquear o funcionamento do órgão de apelações da OMC (Organização Mundial do Comércio), o que impede que a entidade atue para resolver conflitos comerciais internacionais.
Os EUA têm barrado a nomeação de novos juízes para o colegiado desde 2016, ainda no mandato de Barack Obama. Com isso, em 2019, o tribunal deixou de operar, por falta de quórum. As nomeações precisam ser feitas por consenso entre os países-membros.
Em seu mandato, Trump impôs punições comerciais contra a China, como aumentar tarifas e impor barreiras, algo que vai contra as regras da OMC. Sem o corpo de apelação operante, as queixas ficam sem resposta final.
Biden, até agora, manteve a política de bloquear nomeações e não tomou medidas para reforçar a OMC. Durante a campanha, ele prometeu recuperar as instituições de negociação internacional, escanteadas por Trump. No entanto, neste primeiro ano no cargo, tem dito que sua prioridade é resolver questões internas, como os pacotes de infraestrutura travados no Congresso, de modo que o país não deve buscar novos acordos comerciais no curto prazo.
Em evento na segunda (4), Katherine Tai, representante de Comércio dos EUA, disse que a gestão Biden busca garantir que a China siga cumprindo o acordo feito entre os dois países em janeiro de 2020, ainda na gestão Trump, que ficou conhecido como "fase 1". E que, apesar de não estar definido o que seria a fase 2, os EUA seguem buscando evitar que a China adote práticas desleais.
"Quando a China foi alvo de queixas na OMC, fez correções pontuais, mas não mudou sua forma geral de agir. O governo chinês segue investindo bilhões em setores da economia, o que vai contra o modelo de economia de mercado. O crescimento chinês se dá às custas da perda de empregos no mercado de trabalho nos EUA e em outras partes do mundo", disse Tai.
"Temos de estar preparados para usar todas as ferramentas disponíveis e a criar novas, para proteger a economia americana. Nossa política comercial é centrada em proteger os trabalhadores americanos", ressaltou a representante. Ela afirmou também que os EUA apoiam a OMC, mas não falou sobre planos para fortalecer a entidade.
Na terça (5), o chanceler brasileiro Carlos França participou de uma reunião ministerial informal da OMC, em Paris, e defendeu avanços nas regras para subsídios industriais e agrícolas, "de modo a equilibrar as condições de concorrência e viabilizar a redução ou a eliminação de distorções ao comércio internacional", segundo nota divulgada pelo Itamaraty.
"No entendimento brasileiro, a OMC precisa adequar-se aos novos tempos, sem descuidar do avanço em temas tradicionais, sobretudo a agricultura, cujo mandato negociador pouco progrediu desde a criação da Organização", segundo o comunicado.
Os 164 países que integram a OMC, incluindo o Brasil, concordaram em seguir uma série de regras ao trocar mercadorias entre si. A principal delas é a de não colocar barreiras, como tarifas extras, a países específicos. Ou seja: se um governo cobra 10% de imposto para quem importa uma cadeira da Alemanha, também deve cobrar 10% sobre as cadeiras trazidas de qualquer outro membro.
A regra tem exceções, como os acordos comerciais bilaterais ou em bloco. No Mercosul, não há tarifas de importação entre os países-membros. Logo, os argentinos têm mais facilidade para vender itens ao Brasil do que a Itália, por exemplo.
Outro ponto sensível é que os países se comprometem a seguir regras ambientais e trabalhistas, além de respeitar patentes, pois o descumprimento pode ajudar a baratear produtos, o que gera concorrência desleal.
Um caso que voltou à tona nas últimas semanas é um bom exemplo. Em 2018, Trump determinou novas taxas à importação de componentes painéis solares da China, alegando que um fabricante americano faliu por não poder competir com o baixo preço dos chineses.
A China fez uma queixa na OMC, e um painel da entidade decidiu, no começo de setembro –três anos depois– que a decisão dos EUA não desrespeitou as regras do comércio global. O governo chinês recorreu, mas a queixa ficará sem resposta até que o tribunal de apelações seja recomposto.
"O sinal errôneo e perigoso enviado pelo painel da OMC levará a abusos das medidas de proteção e mina seriamente o sistema multilateral de comércio baseado em regras", disse a delegação chinesa, em comunicado, sobre a decisão.
A China, que entrou na OMC em 2001, foi criticada por americanos por práticas assim. Autoridades americanas reclamavam que, pelas regras da entidade, eles não poderiam tomar medidas para frear a entrada de produtos chineses baratos, o que violaria sua soberania nacional. Um estudo do centro de pesquisas EPI (Economic Policy Institute), de 2014, apontou que a entrada de produtos chineses nos EUA gerou desequilíbrios e levou o país a perder 3,2 milhões de empregos entre 2001 e 2013.
Durante o governo Obama (2009-17), os EUA apresentaram 16 acusações contra a China na entidade. Venceu sete. Em 2016, os americanos vetaram a nomeação de um juiz para o tribunal de apelações, dando origem à prática que segue até hoje.
Ao decidir disputas, a OMC não aplica punições diretamente, mas autoriza que o país prejudicado possa retaliar comercialmente quem o prejudicou. E as decisões são transformadas em jurisprudência, a ser usada em disputas futuras.
"Tornar o tribunal de apelação inoperante pode trazer vantagens no curto prazo, como permitir aos EUA impor tarifas sobre aço e alumínio à China, mas a longo prazo traz o efeito de minar um sistema que foi muito útil aos EUA ao longo dos anos", avalia William Reinsch, pesquisador do CSIS (Center of Strategic and International Studies).
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Reinsch lembra que os EUA se esforçaram para criar o sistema atual, nos anos 1990, por cansar de vencer litígios no fórum anterior, o GATT, mas depois não ter como fazer o país derrotado cumprir as decisões.
"A coisa mais eficiente a fazer seria se concentrar em apontar boas pessoas ao corpo de apelação. Este é mais um problema de pessoal do que de processos. Tivemos membros que não seguiam as regras. Em vez de regras melhores, precisamos de pessoas que as sigam", sugere o pesquisador.
Para países em desenvolvimento, como o Brasil, a ausência do corpo de apelação abre espaço para descumprir regras sem ser responsabilizado, mas ao mesmo tempo eles ficam sem ter a quem recorrer se forem alvo de ações desleais. A situação é mais delicada se for preciso peitar grandes economias.
"O enfraquecimento da OMC não é bom para o Brasil nem para os outros países", considera Francisca Grostein, professora de comércio exterior do Mackenzie. "Além dos EUA, outros países-membros, especialmente os mais desenvolvidos, têm colocado seus interesses nacionais como prioridade, o que também prejudica a entidade."
Em fevereiro, a OMC passou a ser dirigida pela nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala. Ela substituiu o brasileiro Roberto Azevedo, que renunciou ao cargo no ano passado, após sete anos no comando.
Uma reforma da instituição é debatida já há alguns anos, mas sem avanços claros. Debate-se criar regras diferenciadas para países em desenvolvimento, de modo a facilitar suas exportações, o que poderia gerar ganhos econômicos ao Brasil. Outra possibilidade é adotar gradações e formar vários grupos de países, para aplicar regras de acordo com seu estágio de desenvolvimento.
"Nos últimos 20 anos, houve muitas mudanças no equilíbrio do poder econômico no mundo, e a OMC precisa se adaptar a isso para recuperar a relevância", diz Grostein.