Bolsonaro infla verba a ruralistas e reduz quase a zero a reforma agrária
A medida acentua um esvaziamento iniciado na gestão Michel Temer (2016-2018) e projeta cenário de extinção da reforma agrária, que já sofre paralisia desde o início do atual governo
O governo de Jair Bolsonaro enviou ao Congresso uma proposta de orçamento para o Incra em 2021 que praticamente reduz a zero a verba de algumas das principais ações destinadas a sem-terra e a melhorias dos assentamentos, ao mesmo tempo em que eleva o dinheiro reservado para o pagamento de indenização judicial a fazendeiros que tiveram suas propriedades desapropriadas.
A medida acentua um esvaziamento iniciado na gestão Michel Temer (2016-2018) e projeta cenário de extinção da reforma agrária, que já sofre paralisia desde o início do atual governo. Em números absolutos, o orçamento do Incra para 2021 até tem uma elevação de 4%, em relação ao aprovado para 2020 –de R$ 3,3 bilhões para R$ 3,4 bilhões.
Desse total, porém, 66% (R$ 2,1 bilhões) foram reservados para o pagamento de precatórios, ou seja, dívidas com fazendeiros que conseguiram na Justiça elevar o valor de indenização por terras desapropriadas por improdutividade –um aumento de 22% em relação ao orçamento deste ano.
Em linha oposta, programas finalísticos da reforma agrária foram praticamente dizimados. Assistência Técnica e Extensão Rural, Promoção de Educação no Campo e Reforma Agrária e Regularização Fundiária tiveram redução de mais de 99% de verba, ficando próximo de zero.
A tesoura nas ações de reconhecimento e indenização de territórios quilombolas, concessão de crédito às famílias assentadas e aquisição de terras ficou acima de 90%. Monitoramento de conflitos agrários e pacificação no campo sofreu corte de 82% e a consolidação de assentamentos rurais, 71%.
Os números foram compilados pela assessoria da Liderança do PT na Câmara e confirmados pela reportagem no Incra e no Projeto de Lei Orçamentária do governo federal para 2021. A proposta, enviada ao Congresso no último dia 31, pode ser alterada por deputados e senadores.
Após o auge observado durante o ano de 2006, no governo Lula (PT), o número de famílias sem terra assentadas passou por um declínio no governo Dilma Rousseff (PT), mas a queda se acentuou de forma aguda a partir de Temer.
Durante a campanha, Bolsonaro chegou a classificar o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) de grupo terrorista.
Ao assumir o governo, em 2019, paralisou os processos de aquisição, desapropriação ou outra forma de obtenção de terras para a reforma agrária, além da identificação e delimitação de territórios quilombolas.
Sob Bolsonaro, o Incra passou a ser subordinado ao Ministério da Agricultura, controlado pelos ruralistas e sob o abrigo do qual está a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários, chefiada pelo pecuarista Nabhan Garcia, um antigo adversário do MST .
A ministra Tereza Cristina (Agricultura) e o próprio presidente do Incra, Geraldo José da Camara Ferreira de Melo Filho, são ruralistas.
A Constituição determina, em seu artigo 184, que compete à União "desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização".
"O orçamento proposto é para liquidar, para acabar com qualquer perspectiva de reforma agrária, para acabar com a instituição Incra. A sociedade e os movimentos sociais do campo têm que fazer uma reação grande agora. E nós, do Parlamento, vamos ter brigar muito", afirmou o deputado federal Beto Faro (PT-PA).
O sociólogo e professor Sérgio Sauer (UnB) chama a atenção para notícias de que, mesmo no caso de terras já desapropriadas, o Incra estaria desistindo dos processos de assentamento sob a alegação de falta de orçamento.
Para ele, a situação tende a agravar a pobreza no campo, a desigualdade e os conflitos.
Dois ex-ministros de desenvolvimento agrário ouvidos pela reportagem fazem análises distintas sobre o tema.
Raul Jungmann, chefe da pasta de Política Fundiária (que virou Desenvolvimento Agrário), de 1996 a 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), disse que a reforma deixou de ser uma questão política relevante, por três fatores.
A ampliação da população urbana, o crescimento dos programas sociais, em especial o Bolsa Família, e o mudança de posição do MST de movimento de oposição para movimento governista, durante as gestões do PT.
Guilherme Cassel, ministro de Desenvolvimento Agrário de 2006 a 2010, sob Lula, diz não haver surpresa nos atuais números orçamentários do Incra. "É a continuidade de uma política que tenta sabotar um processo de reforma agrária. É um governo que não desapropria área, persegue os movimentos sociais, não investe na qualidade dos assentamentos."
"O mais grave é que você está atingindo fortemente a produção de alimentos", diz.
OUTRO LADO
O Incra afirmou, em nota, não ter ingerência em relação aos recursos para o pagamento de despesas com sentenças judiciais e que não sofreu pressão de ruralistas. Segundo a autarquia, o incremento se deu por alteração na lei, de 2017, que determinou que os valores de indenizações judiciais "seriam pagos por meio de precatórios e não mais por expedição de TDAs [Título da Dívida Agrária] complementares".
Sobre os cortes nos programas finalísticos, disse que o projeto de orçamento foi elaborado "com base no referencial monetário indicado ao Incra" e que houve priorização de despesas de custeio, como as fiscalizações nos assentamentos. A autarquia disse ainda que nas discussões do Orçamento-2021 no Congresso irá trabalhar para "reforçar as verbas destinadas as ações finalísticas".
O Ministério da Agricultura disse que em razão do ajuste fiscal a pasta sofreu um bloqueio de R$ 240 milhões, sendo necessário a readequações de valores, e que a secretaria comandada por Nabhan não tem ingerência sobre o orçamento alocado para o Incra.
O ministério também disse que irá tentar elevar os valores no Congresso e reforçou que trabalha para agilizar processos de regularização fundiária em terras da união e em assentamentos.