Seguranças suspeitos de chicotear garoto em supermercado de SP são indiciados por tortura
O segurança David de Oliveira Fernandes, 37, foi localizado e preso na última sexta (6). Ele já tinha ficha criminal por apropriação indébita
O garoto de 17 anos torturado por dois seguranças após furtar barras de chocolate de uma unidade do supermercado Ricoy, na zona sul de São Paulo, reconheceu os suspeitos como os responsáveis pelo espancamento.
O garoto foi levado, na tarde desta segunda-feira (9), ao 80º DP, em Vila Joaniza, onde o caso é investigado. Após o trâmite, o delegado Pedro Luís de Sousa indiciou os suspeitos -que já estavam presos -, pelo crime de tortura.
O segurança David de Oliveira Fernandes, 37, foi localizado e preso na última sexta (6). Ele já tinha ficha criminal por apropriação indébita (quando alguém usa ou pega para si um bem que não é seu ou tira algum proveito dele causando prejuízo ao verdadeiro proprietário).
Leia também:
Ao receber ameaças, garoto torturado vai para abrigo público em SP e aguarda proteção
Homem é assassinado e mãe é atingida por tiro em Dois Unidos
O segundo suspeito, Waldir Bispo dos Santos, 49, também com ficha criminal por lesão corporal contra a mulher, foi preso no sábado (7). Ele se apresentou na Deatur (Delegacia de Apoio ao Turista), o 2ª DP do aeroporto de Congonhas (zona sul), e foi encaminhado ao 80º DP.
Ambos tiveram prisão temporária decretada pela Justiça na quarta (4) e tinham sido desligados da empresa terceirizada que faz a segurança do Ricoy. Em nota, a KRP Valente Zeladoria Patrimonial afirmou que lamenta os fatos.
Segundo as investigações, Fernandes foi o responsável por filmar a sessão de tortura. Já Santos teria chicoteado o garoto.
A tortura é um crime inafiançável, imprescritível e não pode nem ser perdoado mediante indulto oferecido pela Presidência da República.
O menino foi retirado da casa de um de seus irmãos e levado para um abrigo da prefeitura.
A família do menino alegou que sofreu ameaças e recebeu a visita de pessoas desconhecidas nos últimos dias. Por isso, autorizou a ida dele na última sexta-feira (6) para um espaço da rede assistencial para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
O Conselho Tutelar de Cidade Ademar (zona sul) também pediu a inclusão dele no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, do governo federal.
O programa, criado em 2003, é voltado a crianças ameaçadas de morte e é vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, hoje sob o comando de Damares Alves.
A maioria dos atendidos são homens (76%), negros (75%), com ensino fundamental incompleto e têm entre 15 e 17 anos.
Em depoimento à polícia, o menino disse que foi torturado numa manhã do mês de julho. Após ser pego com os chocolates furtados, foi levado pelos suspeitos um cômodo nos fundos do supermercado usado para guardar mantimentos.
No local, foi amarrado, amordaçado, despido e chicoteado numa unidade do supermercado Ricoy, localizada na altura do número 3.884 da avenida Yervat Kissajikian, em Vila Joaniza (zona sul).
Protestos encabeçados por entidades ligadas ao movimento negro foram realizados nas dependências do Ricoy como forma de repúdio à tortura sofrida pelo garoto.
ANALFABETO, USUÁRIO DE CRACK E FILHO DE MÃE ALCOÓLICA
Com mais da metade de seus 17 anos vividos na rua, o menino sempre foi de poucas palavras, disse à reportagem uma cunhada que pediu para não ser identificada.
Filho de pai morto num incêndio de um barraco no início deste ano e de uma mãe alcoólatra, o menino foi parar nas ruas quando ainda era muito pequeno.
Os irmãos tentaram resgatá-lo dessa condição, mas, segundo outra parente próxima, ele não quis aproximação e sempre sumia. Ficou ainda mais longe da família quando esteve na Fundação Casa cumprindo medida socioeducativa após invadir uma casa.
Não sabe ler e nem escrever. Sobreviveu nas ruas pedindo esmolas. Numa padaria, ganhava um copo de café e um pão francês logo nas primeiras horas de cada dia.
Para almoçar, conseguia algumas vezes pagar R$ 1 no Bom Prato, restaurante mantido pelo governo de São Paulo, que fornece 1.250 refeições diárias só na região de Cidade Ademar. "Mais de 80% do meu público é esse aqui", diz a gerente
Janaína Nascimento, apontando para um morador de rua que dormia em frente ao prédio.
A venda de material reciclado também ajudava o garoto a comprar o miojo do jantar, preparado de forma rudimentar com água aquecida numa resistência que era ligada a um fio de energia elétrica clandestino.
Dona de um ponto de salgados e sucos, Cristina Sales, 45, chama o menino de Pitoco. "Ele só tinha idade, mas parecia uma criança quando abria a boca", conta.
A comerciante diz que ficou surpresa quando soube que o seu Pitoco teria furtado o supermercado Ricoy. "Ele nunca pegou nada nosso aqui. Quando eles [moradores de rua] têm as necessidades deles, o mais fácil é pedir. Todo mundo se conhece aqui e a lei é: não roube nada de ninguém para não se prejudicar na comunidade".
O menino descansava em um dos 30 barracos erguidos numa invasão. O local é aberto a todo tipo de sem-teto: de travesti a idosos. Só não entra criança que não nasceu ali.
O lugar acumula montanhas de lixo espalhadas pelo terreno que dividem espaço com cachorros e cerca de 50 pessoas. Tudo é muito improvisado. A comida é feita em fogareiros de tijolos com pedaços de madeira catados na rua. Todos fumam pedras de crack.
O adolescente também é usuário da droga, segundo o delegado Pedro de Sousa, do 80º DP. "Ele é tão 'nóia' que não tem nem mais a impressão digital", afirma, citando o efeito na pele das mãos do manuseio da pedra.
"Ele é um dependente químico que tem a necessidade da droga. No dia que ele não tinha dinheiro para comer, passava aqui, pedia um salgado, um cigarro", lembra Sales.
Na invasão, o adolescente mantinha vínculo afetivo com o ajudante de pedreiro Álvaro (nome fictício), 42, a quem chamava de pai. "Ele nem conseguiu pegar os carrinhos e as flautas que a gente catou no lixo", lamenta.
"Não meterás o louco em seu próximo" é um dos mandamentos que Álvaro fez questão de ensinar ao filho postiço. Versículos bíblicos também povoavam as conversas dos dois.
O ajudante de pedreiro diz que conheceu o menino quando ele tinha 8 ou 9 anos de idade. "A gente morava na rua aqui na região. Ele ficava colando em 'nóis'. Mandei ele ir embora para a casa dele duas vezes e ele sempre voltava. Não teve jeito."
O menino, segundo Álvaro, ficou estranho nos últimos dias e confessou que estava com medo de morrer. "Só ficava dentro de casa. Foi muito duro saber que isso aconteceu com ele", afirma.
A lembrança que não quer perder do filho do coração é tê-lo visto feliz indo de metrô até o IML (Instituto Médico Legal) para fazer o exame de corpo de delito nesta semana. "Ele grudou naquele ferro da cadeira e gritava: nunca andei de metrô não, pai."
Para Álvaro, o adolescente precisa de escola. "Essa rua não é lugar para ele. Esse menino é o nosso presidente de amanhã", sonha.
O grupo Ricoy contratou uma assessoria para mediar a crise na imagem do negócio, que possui 50 lojas espalhadas pelos extremos das zonas sul e leste da capital paulista.
A rede classificou de falsa e descabida a afirmação de que usa métodos escusos para tratar os casos de furto em suas lojas. "O grupo jamais estimulou a violência, a discriminação, a coação, o constrangimento ou a força desmedida e desnecessária.
Qualquer um desses métodos são inaceitáveis nesta ou em qualquer época", afirmou em nota.
Pela lei, o caso deveria ser resolvido na presença de um representante do Conselho Tutelar porque o suspeito do delito é adolescente. A Polícia Militar precisaria ser acionada no mesmo instante, e o crime registrado num boletim de ocorrência. Nada disso foi feito naquela manhã do mês de julho.