Briga de vizinhos: Venezuela e Colombia travam disputa sobre origem de prato típico
Alimento é tradicional desde a época que os povos originários foram colonizados pelos espanhóis
Uma rivalidade acalorada e de longa data ferve entre os vizinhos Colômbia e Venezuela — não por política, migração ou sequer futebol, mas pela humilde arepa.
Esse pão de milho em formato redondo, essencial na culinária de ambos os nossos vizinhos, está presente em tudo, desde pratos de café da manhã até lanches noturnos, profundamente enraizado na cultura de cada nação.
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Incorporada ao vocabulário cotidiano e à cultura popular, a arepa é muito mais do que uma simples refeição.
Mas pergunte a um colombiano ou a um venezuelano quem faz a melhor arepa — ou onde ela se originou — e você se verá no meio de um confronto culinário que transcende fronteiras.
— Todos defendem seu território — disse Gustavo Zapata, 39 anos, chef da rede de restaurantes Sancho Paisa, conhecida por suas tradicionais arepas colombianas em Medellín, a segunda maior cidade do país.
Para além da arepa
O debate sobre a arepa é semelhante a outras disputas gastronômicas ao redor do mundo. Peruanos e equatorianos discutem sobre o ceviche. Israelenses e libaneses disputam o hummus. Vários países do Norte da África reivindicam o cuscuz.
Australianos e neozelandeses brigam pela pavlova, uma sobremesa de merengue coberta com frutas.
Mas essas disputas culinárias também têm tons mais sérios. O presidente Nicolás Maduro, da Venezuela, por exemplo, tentou usar as arepas como um símbolo nacionalista, senão uma ferramenta política, alegando que o prato é exclusivamente venezuelano.
Além disso, com milhões de venezuelanos migrando ao longo dos anos devido à crise econômica e política do país, eles levaram sua versão da arepa pelo mundo, intensificando ainda mais essa grande batalha culinária.
— Eu achava que só nós, venezuelanos, comíamos arepas — disse Jesús Sánchez, 34 anos, proprietário da rede de restaurantes venezuelanos Los Chamos, em Medellín. Ele percebeu que não era bem assim quando começou a visitar a Colômbia há 10 anos: — Elas são muito diferentes.
As arepas são consumidas há milhares de anos, explicou Ocarina Castillo, 72 anos, professora de antropologia especializada em alimentos na Universidade Central da Venezuela.
Quando os desbravadores espanhóis exploraram o norte da América do Sul nos séculos XV e XVI, encontraram os povos indígenas consumindo esses bolos de milho.
Os espanhóis os adaptaram, disse Castillo, transformando a palavra “erepa”, da língua do povo Cumanagoto, que vivia no que hoje é o norte e o leste da Venezuela, em “arepa”. Outros grupos indígenas comiam algo semelhante, mas com nomes diferentes.
Séculos atrás, ressaltou Castillo, as fronteiras que conhecemos hoje não existiam, e as pessoas circulavam livremente.
— Perdemos essa perspectiva e é por isso que insistimos em atribuir uma pátria às arepas — diz.
História compartilhada e a disputa das arepas
Com uma história e cultura parcialmente compartilhadas, além de uma fronteira de 2.250 quilômetros, Colômbia e Venezuela já foram, em diferentes momentos, aliados ou rivais.
No século XIX, inclusive, fizeram parte da mesma nação, a Gran Colômbia.
Desde que a Venezuela mergulhou no autoritarismo sob o governo de Nicolás Maduro, cerca de um quarto da população venezuelana deixou o país.
De acordo com as Nações Unidas, aproximadamente oito milhões de pessoas emigraram desde 2014.
Mais de três milhões de venezuelanos se estabeleceram na Colômbia, um país com 53 milhões de habitantes, onde o encontro das culturas tornou o debate sobre a arepa ainda mais acalorado.
Na Colômbia, as arepas costumam acompanhar pratos, como carnes ou sopas, podendo ser servidas com coberturas ou, ocasionalmente, recheadas.
Já na Venezuela, elas são uma refeição completa — grandes e recheadas com uma variedade de ingredientes, como queijo, banana-da-terra ou carne.
Na Colômbia, as arepas variam conforme a região, enquanto na Venezuela existem diversas variedades populares em todo o país.
Outro aspecto importante é a textura: as arepas colombianas tendem a ser mais crocantes, enquanto as venezuelanas geralmente são mais macias.
Na Colômbia, é comum comprar arepas em lojas, algo que os venezuelanos consideram quase um sacrilégio, pois estão acostumados a prepará-las em casa.
E há mais uma diferença:
— A arepa venezuelana é feita com farinha de milho, e nós usamos o próprio milho. A farinha de milho é fácil de conservar e transportar, então eles conseguem levá-la para qualquer lugar — explicou Andrés Giraldo Rueda, 35 anos, gerente de um restaurante Sancho Paisa em Medellín.
O restaurante de Giraldo, que também conta com uma loja, oferece 14 tipos de arepas — de milho branco, milho amarelo, milho tratado com cinzas, além de versões com queijo misturado à massa — e vende milhares de unidades todos os dias.
Em uma manhã recente, praticamente todos os clientes estavam comendo arepas, acompanhadas de ovos, queijo ou chicharrón (espécie de torresmo).
Quem está vencendo a “guerra das arepas”?
A resposta depende de quem você perguntar. Segundo Ocarina Castillo, a professora de antropologia, a Venezuela está na liderança devido à sua vasta diáspora espalhada pelo mundo.
— Existem lojas de arepas colombianas fora da Colômbia? — questionou Jesús Sánchez, que se mudou com a família para Medellín há alguns anos. Eles começaram vendendo arepas venezuelanas em um carrinho de rua em 2015, e hoje possuem quatro restaurantes com 40 funcionários, quase todos venezuelanos.
Por outro lado, Juan Manuel Barrientos, chef colombiano com duas estrelas Michelin e restaurantes na Colômbia, Miami e Washington, acredita que a disputa está empatada devido ao crescente status turístico do país.
— Servimos arepas para muitos turistas nos últimos 10, 15 anos — disse ele. As arepas colombianas até apareceram no filme da Disney ‘Encanto’.
Nas redes sociais, a rivalidade das arepas gerou discussões fervorosas e inúmeros vídeos, além de ser motivo de piadas.
Angelo Colina, comediante venezuelano, se tornou viral em 2021 ao escrever que achava estar com covid porque a arepa que estava comendo não tinha gosto. Ele brincou que percebeu, então, que o restaurante era colombiano — o que, como esperado, provocou reações inflamadas.
— Os colombianos me ‘assaram’, e honestamente, eu mereci — confessou ele depois.
Um exemplo curioso do atual ranking das arepas pode ser encontrado em um lugar improvável: Roterdã, nos Países Baixos.
Diego Mendoza, dono de uma barraca de arepas, deixou a Venezuela em 2015 em busca de melhores oportunidades, graças ao seu passaporte espanhol, herdado do avô que emigrou da Espanha.
Após trabalhar em uma empresa em Barcelona, depois na Polônia e, mais tarde, em Roterdã, Mendoza, de 32 anos, sentiu saudades de casa e da comida venezuelana.
Então, começou a preparar e vender arepas em mercados ao ar livre semanais, aperfeiçoando a receita da família aos poucos.
“Estamos em todo lugar, mas os colombianos também”, disse ele. “Por tudo o que estamos passando, a tragédia, damos muito mais importância à arepa do que os colombianos.”
Em maio de 2023, Mendoza inaugurou seu ponto fixo, chamado Erikucha Arepera, em um mercado popular de Roterdã, na Holanda.
Como é mais fácil visitar a Colômbia do que a Venezuela — e apesar da bandeira venezuelana exposta na barraca —, muitos clientes holandeses chamam as arepas de colombianas, pois as reconhecem de suas viagens. Mendoza, então, explica que as arepas também são venezuelanas.
Com uma tatuagem de uma arepa com as estrelas da bandeira venezuelana no braço, Mendoza não se incomoda com a confusão ou a rivalidade. Ele acredita que algo tão delicioso não deveria dividir as pessoas. Na verdade, deveria uni-las.
— A verdade é que não importa se são colombianas ou o que for. O que eu sei é que a arepa deveria pertencer ao mundo.