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'Joias' do patrimônio cultural, casarões seculares revelam história de ocupação do Recife

Como peças de uma exposição ao ar livre, sobrados remontam aos séculos 18, 19 e 20. Poder público reavalia tombamento dos bairros do Recife, São José e Santo Antônio.

Construído em 1905, o Castelinho é uma das primeiras casas de veraneio de Boa ViagemConstruído em 1905, o Castelinho é uma das primeiras casas de veraneio de Boa Viagem - Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

Pouco importa a obrigação diária que faça você sair de casa: andar pelo Recife é testemunhar o passado em contato com o presente. Ou, pelo menos, deveria ser.

Por trás dos muros, das calçadas e das fachadas de diferentes estilos arquitetônicos, o recifense se depara com uma História de quase 500 anos, marcada por brigas políticas, revoltas armadas, festas populares e contrastes sociais. Uma paisagem urbana que, do cais de um porto, se fez vila, cresceu como cidade, firmou-se capital de Estado e hoje é o coração de uma região metropolitana de cerca de 4 milhões de habitantes.

Uma parte dessa memória está guardada em casarões seculares que resistem no trabalho de ornamentar a metrópole pernambucana como peças de uma exposição ao ar livre.

São casas geminadas e sobrados altos que se mostram aos olhos dos transeuntes não só em logradouros mais antigos, como as ruas da Aurora, do Imperador e do Bom Jesus, mas também em bairros de urbanização mais recente, como Madalena, Graças e Boa Viagem.

Para quem mora junto deles, a sensação de encantamento aumenta. “Eu cuido deste condomínio como um cristal e nós temos um ‘castelo’ na nossa residência. Então, todo dia é dia de preservação”, declara Edla Ventura, síndica do edifício Costa Azevedo, que guarda um icônico casarão da década de 30 no bairro dos Aflitos, Zona Norte.

“É um grande privilégio. O encontro do antigo com o moderno é um ‘match’ perfeito”, diz a empresária Carol Beltrão Carneiro, que mora há 16 anos no prédio onde fica o famoso Castelinho de Boa Viagem (veja no infográfico abaixo).

Uma urbe criada por invasores
O casario recifense que sobrevive até os dias atuais nos conta uma história iniciada antes mesmo de existir.

Citadas pela primeira vez oficialmente no Foral, documento assinado pelo donatário Duarte Coelho em 12 de março de 1537 - daí vem a data de aniversário da cidade -, as terras do Porto e do pequeno povoado que ocupava o que hoje é o Bairro do Recife foram, durante um bom tempo, tudo o que chegava mais perto de uma área urbana na futura capital de Pernambuco. Uma ribeira portuária subordinada a Olinda, o centro político da capitania.

A situação só começou a mudar quase um século depois, com a segunda leva de invasores depois dos portugueses.

“Os holandeses se identificaram mais com as condições geomorfológicas do Recife, que se assemelham às dos Países Baixos, e, interessados em destruir o símbolo e a sede do poder português aqui, incendiaram Olinda", conta o pesquisador Tomás Lapa, doutor em Geografia Humana e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

"A estada holandesa foi curta e nós tivemos um plano urbanístico pautado pelas regras mais avançadas da época, mas que não foi integralmente implantado. Aquela tendência de tratar o solo com drenagens e canais, típica do urbanismo holandês, não vingou, e o nosso processo foi de avançar sobre as áreas inundáveis, aterrando-as”.

Casarões do Recife

Expansão em torno das igrejas
No período do Brasil holandês, além das ocupações na Cidade Alta de Olinda, no Porto do Recife e na Ilha de Antônio Vaz, que corresponde aos bairros de Santo Antônio, São José, Cabanga e Joana Bezerra, já havia engenhos e propriedades rurais em localidades mais afastadas como Madalena e Várzea, onde, mais tarde, cresceriam núcleos de povoamento.

Com a expulsão dos neerlandeses em 1654, a rivalidade entre a aristocracia de Olinda e a burguesia comercial do Recife, que, nos anos 1700, daria na Guerra dos Mascates, se intensificou.

Nesse contexto de demonstração de força aos arquirrivais olindenses, foram erguidas, nas áreas entre Santo Antônio, São José e Bairro do Recife, igrejas barrocas, entre elas, a de Nossa Senhora do Pilar, inaugurada em 1683, a Basílica do Carmo (1767) e a de São Pedro dos Clérigos (1782), que atraíram, no entorno, o surgimento de povoações urbanas, chamadas de freguesias.

“Existe pouca documentação sobre a ocupação do Recife no século 18, porém uma coisa é certa: a construção de todas essas igrejas, que definiam as freguesias, avançou bastante [a expansão da cidade]. E houve também, naturalmente, a construção de sobrados”, explica o professor Tomás Lapa.

Na falta de pedras como o calcário, a maioria das residências no Litoral e na Zona da Mata pernambucana era de taipa e as mais distantes da cidade chegavam a ter chão batido, enquanto os templos católicos, as principais referências que ditavam as tendências arquitetônicas do período colonial, eram erguidos com material importado, de mais durabilidade.

Cortado por rios e canais e considerado, já naquela época, escasso de áreas para a expansão habitacional, o município tornava-se conhecido pelos sobrados “magros”, ou seja, casarões altos e estreitos.

Mas foi no século 19 que o avanço dos aterros e da malha urbana ganhou impulso em direção à parte continental do território, após a nomeação para presidente da província de Pernambuco, em 1837, do aristocrata Francisco do Rego Barros, o futuro conde da Boa Vista.

Sede da Academia Pernambucana de Letras é um palacete neoclássico do século 19Sede da Academia Pernambucana de Letras é um palacete neoclássico do século 19 (Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco)

Boa Vista e os neoclássicos franceses
Parte dos casarões apreciados hoje vem dos anos 1800, quando arquitetos, urbanistas e artistas franceses, muitos deles antigos apoiadores do regime de Napoleão Bonaparte, que governou a França até 1815, se estabeleceram no Brasil imperial.

“Vindo de uma família 'importante', Rego Barros havia participado daqueles movimentos revolucionários do século 19 e foi estudar em Paris, de onde ele trouxe o engenheiro Louis Léger Vauthier para remodelar a cidade do Recife, que não dispunha de equipamentos mínimos para um centro de importância regional”, diz o pesquisador Tomás Lapa.

É desse período sob influência francesa a construção de prédios públicos como o Teatro de Santa Isabel (1850), a Casa de Detenção, hoje Casa da Cultura (1855), o Hospital Pedro II (1861) e o Ginásio Pernambucano (1866), todos eles de estilo neoclássico.

Estética vigente na Europa, o neoclassicismo, que resgatava os princípios de proporção e simetria dos templos de Roma e Grécia antigas, é também o modelo da residência do próprio conde da Boa Vista, localizada na rua da Aurora e projetada diretamente por Vauthier, além de outras edificações construídas nos anos seguintes, entre elas, o Palácio dos Manguinhos e a atual sede da Academia Pernambucana de Letras.

A inauguração dos novos espaços gerou uma demanda que levou à necessidade de se expandirem os serviços de transporte, por carroças ou barcos, fazendo a ligação entre o Centro e as localidades dos antigos engenhos, como Apipucos, Casa Forte e Madalena. Assim, os casarões se multiplicavam às margens do Capibaribe.

Palácio dos Manguinhos, nas Graças, já hospedou o Papa João Paulo 2ºPalácio dos Manguinhos, nas Graças, já hospedou o Papa João Paulo 2º, em 1980 (Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco)

O ecletismo e o legado cultural
Já nos anos finais do século dominado pela arquitetura neoclássica, começou a vigorar, não só no Recife, mas no mundo ocidental, uma tendência ao ecletismo.

Assim como o termo que se usa para falar de quem escuta ou toca gêneros musicais muito diferentes, o estilo eclético consiste na mistura de elementos estéticos distintos, incluindo o barroco e o gótico, adotados em épocas anteriores. É o caso, por exemplo, do casarão Costa Azevedo.

Nesse início de século de 20, no espírito da reforma do Bairro do Recife, muitos sobrados antigos foram demolidos e substituídos por construções mais modernas. O centro histórico foi deixando de ser residencial, e a população que se concentrava em Santo Antônio, São José e Boa Vista passou a habitar áreas mais valorizadas, em especial, Boa Viagem.

Antes um lugar bucólico de poucas casas de veraneio, entre elas, o Castelinho, o cartão-postal da Zona Sul cresceu a partir da década de 20, quando foi traçada a pista da avenida à beira-mar, que atraiu visitantes estrangeiros nos anos 40 e, após o “milagre econômico” durante a ditadura, ganhou a atenção do crescente mercado imobiliário.

Embora nem sempre valorizado, todo esse histórico, formado por tradições que acompanharam a evolução de tendências artísticas do mundo, deixou um legado de grande riqueza patrimonial.

“A gente tem uma concentração dos edifícios mais antigos no núcleo inicial de formação da cidade, mas esse patrimônio permeia a cidade como um todo. Inclusive, o Recife tem um destaque nacional na produção modernista, que começou simultaneamente ao que acontecia no eixo do Sudeste brasileiro”, explica a pesquisadora Natália Vieira, professora associada da UFPE e coordenadora da Comissão de Patrimônio Cultural do Instituto dos Arquitetos do Brasil em Pernambuco (IAB-PE).

Para a especialista, um dos grandes desafios para a garantia de preservação dos bens históricos é fazer parte da sociedade reconhecer o valor agregado da História.

“O primeiro impasse é de educação patrimonial. O casario histórico deve ser incorporado à dinâmica urbana contemporânea. Além disso, a política de planejamento urbano deve incluir a preocupação com a preservação do patrimônio. Um Plano Diretor, por exemplo, tem um papel fundamental”, considera a professora.

Pela conservação de um rico patrimônio
O Recife conta hoje com 46 bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e 44, pelo Governo do Estado, que analisa também o pedido de tombamento para o Monumento aos Aviadores Portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, na Praça 17, em Santo Antônio.

Casarão Costa Azevedo, nas Graças, RecifeCasarão Costa Azevedo (Foto: Rafael Furtado/FolhaPE)

Além deles, a cidade tem ainda 33 Zonas Especiais de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural (ZEPHs) e 263 imóveis de preservação especial (IEPs), titulações conferidas pela Prefeitura.

Muitos dos casarões citados na reportagem não chegam a ser tombados, mas são IEPs. É o caso do Castelinho e do Costa Azevedo.

“O tombamento é um registro em livro, chamado de tombo, em que cada imóvel tinha um número. O município não tem esse tipo de acautelamento urbanístico, mas as regras são basicamente as mesmas, e, dependendo do contexto, somos até mais restritivos”, diz a gerente geral de Preservação do Patrimônio Cultural da Secretaria Municipal de Política Urbana e Licenciamento do Recife, Lorena Veloso.

De acordo com ela, mais dois imóveis, uma casa modernista no bairro da Jaqueira e o conjunto do Colégio Sagrada Família e Igreja de Casa Forte, serão incluídos na lista de preservação especial neste semestre.

A despeito do valor cultural que eles carregam, ainda é comum encontrar casarões vazios e, em alguns casos, em estado precarizado. Para avançar na conservação desse patrimônio, Veloso diz que as leis das ZEPHs, dos IEPs e de Uso e Ocupação do Solo estão sendo revisadas.

“É o nosso dever de casa há algum tempo. E a nossa meta é viabilizar toda a revisão dessas leis para que os proprietários e os comerciantes sejam mais atraídos não só para conservar seu bem, mas para comprar, morar, usar. Nós temos que provocar esse ativo econômico”, considera.

Da parte do Governo Federal, a arquiteta e urbanista do Iphan de Pernambuco, Ana Paula Bitencourt, afirma que o órgão também está revisando o tombamento dos bairros do Recife, de São José e de Santo Antônio, medida considerada importante para a execução de obras de requalificação nesses locais.

A expectativa é concluir os estudos até o próximo ano. “Nós queremos compreender esses bens numa visão mais ampla e integrada, inseridos numa paisagem”, detalha. “Assim, conseguimos regular mais, deixar claro o que e como se pode ou não fazer [naquelas áreas], com o objetivo de nortear as intervenções para que elas sejam compatíveis com o patrimônio histórico”.

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