SAÚDE

Caso de mulher imune a dor e a ansiedade abre caminhos para tratamento de lesões e estresse

Estudo de mutações genéticas em uma escocesa de 75 anos pode revolucionar o desenvolvimento de analgésicos sem o risco de dependência dos opioides

Cada vez mais frequente, a lombalgia, um dos tipos de dor nas costas, afeta severamente a qualidade de vida das pessoas.Cada vez mais frequente, a lombalgia, um dos tipos de dor nas costas, afeta severamente a qualidade de vida das pessoas. - Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

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Joanne Cameron, uma mulher de 75 anos que vive na Escócia, é uma mutante feliz. Ela tem uma alteração na expressão do gene FAAH, que produz uma enzima que processa os endocanabinóides e faz com que eles sejam absorvidos pelo corpo, o que a mantém em um estado de bem-estar extraordinariamente constante.

No corpo de Cameron, os níveis de anandamida, uma substância com efeitos semelhantes aos da maconha, são mais altos do que o normal porque ela permanece intacta por mais tempo, e seus níveis de ansiedade, estresse ou dor são muito menores.

— Isso me deixa ridiculamente feliz, e é chato estar perto de mim. As pessoas gostam de ficar tristes — brincou ela alguns anos atrás, em entrevista ao El País.

Seu caso chegou aos especialistas em genética da dor da University College London (UCL) em 2013, quando seus médicos perceberam que ela estava sem dor após duas operações sérias no quadril e na mão. Desde então, os pesquisadores tentaram entender o que torna Cameron “especial” para ajudar milhões de pessoas que vivem com dor crônica e ansiedade e convivem com soluções insuficientes ou drogas perigosamente viciantes.

Recentemente, em um trabalho liderado por Andrei Okorokov e James Cox, da UCL, e publicado na revista Brain, pesquisadores detalharam algumas peculiaridades da escocesa. Uma em cada três pessoas tem um gene FAAH mutado e níveis mais altos de anandamida, mas nem todos desfrutam de proteção contra as “provações” de Cameron.

Ela tem outra mutação rara em um gene chamado FAAH-OUT, encontrado no que era conhecido como “DNA lixo”, uma região do genoma que por muito tempo foi considerada inútil porque, apesar de constituir 98% do nosso material genético, não produz proteínas.

Nos últimos anos, descobriu-se que esses genes obscuros influenciam como aqueles que produzem proteínas são expressos. Essa interação explica o caso de Cameron, uma professora aposentada. Okorokov afirma que "o gene FAAH-OUT é um pequeno canto de um vasto continente que este estudo começou a mapear".

Além de identificar a base molecular para a ausência de dor, o trabalho encontrou a maneira pela qual a mutação desse gene obscuro melhora o humor ou facilita a cicatrização de feridas. De acordo com Okorokov, "essas descobertas terão implicações importantes para áreas de pesquisa como cicatrização de feridas ou depressão". Os pesquisadores observaram que, além de reduzir a atividade do gene responsável pela remoção dos endocanabiontes do sangue, existem outros 348 genes atenuados, mas também 797 intensificados. Entre eles está o WNT16, relacionado à regeneração óssea, ou BDNF, que influencia o humor.

Este trabalho é um passo para resgatar o potencial do sistema endocanabinoide como alvo de tratamentos contra a dor em um mundo onde cerca de 20% da população sofre com isso de forma crônica e em que a epidemia de dependência causada pelo uso indevido é alarmante. Após duas décadas de testes com medicamentos que inibem o gene FAAH, nenhum foi aprovado e, em 2016, um deles provocou uma tragédia num ensaio clínico realizado na França pela empresa portuguesa Bial.

A droga, destinada a tratar problemas motores e de ansiedade em doenças como o Parkinson, causou envenenamento no cérebro dos participantes, o que resultou na morte de um deles e causou danos significativos em outros quatro. Pesquisas subsequentes concluíram que a molécula teve efeitos inesperados em outras enzimas além daquelas que pretendia bloquear.

Drogas à base de canabinoides
Javier Fernández, diretor do grupo de pesquisa de canabinoides da Universidade Complutense de Madri, acredita que esses resultados “abrem a possibilidade de intervir diretamente nesse processo de regulação”. O pesquisador acredita que, do ponto de vista prático, ainda é ficção científica, “porque é difícil levar este tipo de agentes aos locais onde serão úteis e, em muitos casos, são enzimas ou proteínas muito ubíquas, portanto, uma ferramenta como essa pode afetar muitas coisas e ter muitos efeitos colaterais”.

No entanto, ele afirma que “é um bom guia para o futuro” e “recupera o valor dos inibidores farmacológicos, que ficaram um pouco travados por aquele ensaio falhado”. “Por enquanto, apenas o Sativex é aprovado no Canadá para dor oncológica, quase como uma exceção, em uso compassivo”, diz.

Embora Fernández reconheça que o poder dos canabinoides para combater a dor é menor que o dos opioides, ele lembra que "eles também são muito mais seguros" e podem potencializar os efeitos em nosso sistema interno de opioides. Segundo o pesquisador, uma forma de aproveitar esses efeitos sinérgicos seria combinar uma dose baixa de um opioide, que por si só não teria efeito, com outra dose reduzida de um canabinoide.

— Com essa combinação, seriam obtidos os mesmos efeitos dos opioides usados agora, mas sem os problemas da epidemia [devido ao uso dessas drogas] que foi vista nos EUA e agora começa a ser vista na Europa — explica.

Andrés Ozaita, professor de Farmacologia da Universidade Pompeu Fabra, acredita que o conhecimento obtido com o estudo de pessoas como Joanne Cameron pode levar a tratamentos que mudam a forma como entendemos o tratamento da dor.

— Conhecendo esses mecanismos de expressão gênica, novas abordagens podem ser consideradas, como a terapia gênica para pessoas com dor crônica, tornando os neurônios dos gânglios da raiz dorsal menos eficazes e reduzindo a sensação de dor — exemplifica Ozaita. Esse tipo de terapia consistiria na transferência de material genético para modificar a expressão de alguns genes dos pacientes e torná-los mais semelhantes aos de pessoas como Cameron. — A médio prazo, eu veria como viável, principalmente para tratar os casos mais extremos.

Embora Cameron seja uma pessoa com menos ansiedade e dor do que a média, ela mesma reconheceu em uma entrevista a El País em 2019 que suas mutações não oferecem apenas vantagens.

— Costumo me queimar na cozinha e não sei até sentir o cheiro de carne queimada. Tenho muitas cicatrizes no corpo — contou na ocasião. — Não é uma coisa boa. Isso tem suas vantagens e desvantagens. A dor diz que algo ruim está acontecendo. E eu não sei.

Como muitas outras variantes biológicas, que foram selecionadas ao longo da evolução, não há benefícios gratuitos.

— Se você fizer testes de atenção ou coordenação, é provável que sejam traços afetados — diz Ozaita. Além disso, nem todas as circunstâncias em que os humanos viveram seriam seguras para uma pessoa tão despreocupada quanto a escocesa. A dor e a ansiedade que muitos agora experimentam e que o estudo da mutação de Cameron pode ajudar a aliviar é, em parte, o preço de milhões de anos de sobrevivência.

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