Catedral de Notre-Dame reabre com "lições aprendidas" hoje, cinco anos após destruição por incêndio
Restauração do monumento foi concluída sob a alcunha de "projeto do século", mas memórias da tragédia e questões envolvendo a segurança do patrimônio permanecem vivas
Eram 18h18 de 15 de abril de 2019, e o reverendo Jean-Pierre Caveau celebrava uma missa diante de centenas de fiéis e visitantes na Catedral de Notre-Dame, em Paris, quando o fogo teve início. Imagens do incêndio que atingiu a igreja mais famosa do mundo começaram a circular rapidamente, e testemunhas assistiram atônitas ao desastre.
— Foi um terror, as pessoas choravam ajoelhadas nas ruas — disse o restaurador Gustavo Maron, que presenciou o incidente, ao Globo.
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Cinco anos mais tarde e sob a alcunha de “projeto do século”, a restauração do icônico monumento medieval foi concluída — e a catedral, será reaberta neste sábado com uma grande cerimônia. As memórias da tragédia, no entanto, permanecem vivas, assim como as questões levantadas sobre a segurança e os erros que permitiram que o fogo se alastrasse de forma tão rápida e destrutiva.
A investigação judicial sobre as possíveis causas do incêndio ainda não identificou culpados, e a possibilidade mais aceita é, até hoje, a de um acidente — que evidenciou as vulnerabilidades do sistema de incêndio da catedral.
No processo de reconstrução, portanto, houve investimentos em sistemas mais avançados de hidrantes internos, além de tecnologias de supressão de incêndios e um sistema integrado de alarme de última geração, que também inclui o monitoramento de ar em toda a estrutura e uma série de câmeras térmicas. Duas paredes corta-fogo foram instaladas, dividindo o sótão e o telhado em três áreas distintas.
— Acho que as lições foram aprendidas. A avaliação de risco da catedral era baseada nas grandes peças de madeira da estrutura do telhado, ignorando as reformas realizadas no século XIX que adicionaram um material combustível leve. Isso fez com que o fogo se propagasse muito mais rapidamente do que o previsto, levando ao colapso do telhado — disse ao Globo Albert Simeoni, especialista em fogo nascido e treinado na França, mas atualmente chefe de engenharia de proteção contra incêndio no Instituto Politécnico de Worcester, nos Estados Unidos.
No total, a restauração da obra arquitetônica original, construída há quase mil anos, teve a participação de 250 empresas e centenas de artesãos, com um custo de quase 700 milhões de euros (R$ 4,2 bilhões, na cotação atual), financiados por doações de 150 países.
O esforço global para a reconstrução da igreja é explicado, ao menos em parte, segundo analistas, pelo “fascínio duradouro pela Idade Média”, mas também pela noção de patrimônio histórico.
Exemplo da arquitetura gótica medieval, a catedral tornou-se sinônimo da própria trajetória francesa, acompanhando desde a proclamação de Henrique V da Inglaterra (1421-1471) como rei da França até a cerimônia de Ação de Graças de 1944, após a Libertação de Paris durante a Segunda Guerra.
No dia do incêndio, o funcionário de segurança que monitorava o painel de alarme da catedral estava havia apenas três dias no cargo quando o primeiro aviso surgiu: um código quase indecifrável num sistema de alerta complexo, que demorou seis anos para ser construído e envolveu dezenas de especialistas.
A mensagem que aparecia no monitor era muito mais complicada do que a simples palavra “fogo”. Ela dava uma descrição abreviada da zona, com uma sequência de letras e números, além de um código para um detector de fumaça específico entre os mais de 160 no complexo.
Não se sabe o quanto dessa mensagem o guarda entendeu. Ele avisou seu superior e foi verificar o ocorrido, mas não encontrou nada — uma falha que só foi identificada tempos mais tarde, quando seu gerente percebeu que ele havia checado o local errado.
— A confusão sobre a área aproximada do incêndio e o tempo necessário para alcançarem o telhado pelas escadas resultaram em uma perda de tempo significativa, o que permitiu que as chamas crescessem para além da capacidade de controle dos bombeiros — disse Simeoni.
As falhas na resposta ao incêndio podem ter sido agravadas pela inexperiência do funcionário de segurança, mas também pelo cansaço. No local desde as 7 da manhã, ele deveria ter sido substituído após um turno de oito horas. Seu colega de trabalho, no entanto, não compareceu, e o guarda precisou enfrentar um segundo turno seguido.
Meses após o ocorrido, Arnaud Demaret, diretor-executivo da empresa que contratou o funcionário, disse ao The Times que o guarda ainda estava em estado de choque, e que a companhia recebeu ao menos duas ameaças de morte por telefone nos dias seguintes ao incêndio.
Das cinzas ao renascimento
O fogo começou na área conhecida como “floresta”, uma estrutura de 100 metros de comprimento, 13 de largura e 10 de altura localizada no telhado da igreja e que formava uma espécie de sótão. Segundo a rede britânica BBC, cerca de 1,3 mil vigas de madeira foram usadas em sua construção, cada uma proveniente de uma árvore diferente — daí o apelido la forét (“a floresta”).
Os desafios para restaurar uma área com tamanha relevância histórica não foram poucos, e a tecnologia desempenhou um papel fundamental, disse ao Gobo Michael Davis, especialista em arquitetura gótica do Mount Holyoke College e membro do conselho da organização Friends of Notre-Dame de Paris, que arrecadou fundos para a restauração da catedral.
— Após considerar várias opções para reconstruir a estrutura do telhado incinerado, como metal, concreto ou algum outro material resistente ao fogo, foi decidido reproduzir a ‘floresta’ medieval em madeira. Como explicou Philippe Villeneuve, o arquiteto encarregado da restauração de Notre-Dame, o design e o peso do telhado de madeira formaram um equilíbrio perfeito com a estrutura de pedra da catedral. Este é um caso em que a tecnologia contemporânea reconhece o gênio da tecnologia construtiva medieval para guiar a reconstrução de hoje — disse Davis.
O especialista afirmou que uma das marcas do projeto de reconstrução atual é sua fidelidade ao estado da catedral na manhã de 15 de abril de 2019, pouco antes do incêndio. A decisão, porém, não ocorreu sem debates: inicialmente, o presidente francês, Emmanuel Macron, convocou um concurso internacional para projetar uma substituição contemporânea para a famosa agulha, uma torre de 93 metros no centro do telhado que desabou durante o incêndio.
No entanto, essa ideia foi rejeitada em favor de uma reconstrução que respeitasse a Carta de Veneza de 1964, que reconhece o patrimônio histórico como universal, e as recomendações sobre a preservação histórica.
— Entre 2010 e 2012, o falecido historiador Andrew Tallon realizou uma varredura a laser da Catedral de Notre-Dame, capturando uma imagem precisa de toda a igreja. Anos depois, em 2015 e 2016, a estrutura do telhado foi meticulosamente registrada pelos arquitetos Rémi Fromont e Cédric Trentesaux. Assim, o estado pré-incêndio de Notre-Dame foi documentado com um nível de detalhe sem precedentes, permitindo que a reconstrução, mesmo de seções severamente danificadas ou destruídas, tivesse uma base factual sólida — destacou.
O esforço trouxe os resultados esperados. Na semana passada, imagens transmitidas ao vivo de uma visita ao local feita por Macron mostraram o interior da catedral como os fiéis a teriam vivenciado nos séculos anteriores, com seus espaços amplos e abertos, cheios de luz brilhantes e com as cores vibrantes dos vitrais, relatou a AP.
Diante de mais da metade dos 2 mil trabalhadores e artesãos de toda a França — e de outros lugares — que contribuíram para a reconstrução da igreja, o mandatário francês declarou que eles “conseguiram o que se dizia ser impossível”, indicando que a reabertura do local será “um sopro de esperança”.
Ao entrar na catedral, fiéis e visitantes agora encontrarão um eixo central e móveis litúrgicos novos e minimalistas. A diocese e o governo francês esperam receber entre 14 milhões e 15 milhões de visitantes anuais após a reabertura, que incluirá um plano de circulação redesenhado e um sistema de reservas online.