CFM proíbe procedimento médico pré-aborto após 22 semanas de gestação resultante de estupro
A norma vale apenas para os casos de aborto legal de gestações resultantes de violência sexual
Uma nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) proíbe médicos de realizarem um procedimento necessário para a realização do aborto legal em gestações com mais de 22 semanas resultantes de estupro.
A norma determina que, a partir dessa idade gestacional, os profissionais ficam impedidos de fazer a chamada assistolia fetal, que consiste na injeção de uma substância que provoca a morte do feto para que depois ele seja retirado do útero da mulher.
A norma vale apenas para os casos de aborto legal de gestações resultantes de violência sexual, mas não altera a regra para as duas outras situações em que a interrupção da gravidez é permitida por lei: risco de vida à gestante e feto com anencefalia.
O procedimento de assistolia fetal em casos de aborto, no entanto, é respaldado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a partir das 20 semanas de gestação. Especialistas criticam a norma do CFM alegando que ela vai contra a legislação vigente no País e irá dificultar o acesso ao aborto legal, em especial para meninas e mulheres em situação de maior vulnerabilidade.
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No texto de justificativa que acompanha a resolução, aprovada em plenária do conselho em 21 de março e publicada no Diário Oficial da União nesta quarta-feira, 3, o CFM argumenta que "havendo viabilidade fetal, deve ser assegurada a tecnologia médica disponível para tentar".
O texto diz ainda que a "atitude irreversível de sentenciar ao término uma vida humana potencialmente viável fere princípios basilares da medicina e da vida em sociedade".
A resolução foi aprovada e publicada pouco mais de um mês depois da publicação e posterior revogação de uma nota técnica do Ministério da Saúde que reforçava que a legislação atual no Brasil não estabelece prazo para que o aborto legal seja feito e que os serviços de saúde, portanto, não deveriam fixar esses prazos. A nota, porém, gerou forte reação de parlamentares conservadores e foi revogada no dia seguinte à sua publicação pela ministra da Saúde, Nísia Trindade.
O documento desautorizava um manual anterior publicado na gestão de Jair Bolsonaro que estabelecia que, a partir das 22 semanas, havia viabilidade fetal e, por isso, o recomendado não era realizar o aborto, mas, sim, a indução do parto e eventual encaminhamento do bebê para adoção.
O documento da gestão anterior foi elaborado pelo então secretário de Atenção Primária do ministério na gestão Bolsonaro, o ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente, que é conselheiro do CFM e foi o relator da resolução agora aprovada pela entidade médica.
Em entrevista à imprensa realizada nesta quinta-feira, Parente defendeu que a norma é "um ato civilizatório" para impedir a morte de um bebê viável, e negou que a aprovação da resolução neste momento tenha relação com a nota técnica do ministério do mês passado.
"Eu entrei como relator dessa resolução há anos, não tem nenhuma relação com a nota técnica. Só que existe um trâmite, até por ser um tema polêmico, temos que ouvir o contraditório", explicou Parente, justificando porque somente agora a resolução foi aprovada.
Questionado durante a entrevista coletiva se a norma não impedia que mulheres mais vulneráveis, em áreas desassistidas, poderiam ser prejudicadas por não conseguirem ter acesso ao aborto legal antes das 22 semanas, o conselheiro afirmou que "qualquer maternidade do Brasil pode fazer aborto de primeiro trimestre".
Norma vai impedir atendimento de meninas, dizem especialistas
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), entidade médico-científica que reúne os ginecologistas e obstetras, criticou a resolução do CFM.
"Através da sua Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista em Lei, a Febrasgo se manifesta contrária à resolução, pois apenas vai impedir o atendimento de meninas de 10, 11, 12 anos que engravidam em decorrência de estupro e demoram para conseguirem o devido atendimento por várias razões", afirmou Rosires Pereira, presidente da comissão.
Ele disse ainda que a norma do conselho certamente "vai dificultar o acesso de mulheres pobres, negras e adolescentes ao atendimento que, por diversas razões, não conseguem ser atendidas no início da gravidez resultante de estupro".
Professora da Universidade de Brasília e especialista em bioética, Debora Diniz diz que o CFM age fora das suas atribuições legais ao publicar tal resolução. "O que eles estão fazendo é regulando, desenhando a política pública uma vez que ao Código Penal descriminaliza o aborto em caso de estupro, e isso não é uma atribuição do Conselho Federal de Medicina", afirmou.
Ela também menciona o prejuízo para meninas e jovens em situação de maior vulnerabilidade. "Quem mais chega com atraso nos serviços de saúde são as meninas vítimas de violência na própria casa. O estupro na casa é uma violência silenciosa, ela emudece a vítima. Quando esse corpo é transformado (pela gravidez), muitas vezes são estágios um pouco mais avançados (da gestação)", diz a especialista.
Debora diz que as meninas, portanto, enfrentam "segredo na casa, barreiras de acesso e escassez de serviços" de saúde e argumenta que manter a gestação em idades muito jovens coloca em risco a vida da menina. "Um estudo recente no Canadá, o maior já feito, mostrou que, quanto mais jovem uma menina é obrigada a se manter grávida, maiores chances de vir a resultar em morte materna", afirma.
Para a especialista, a resolução caracteriza "uma omissão de socorro pelos médicos no seu dever de cuidar", já que a legislação em si não impede a realização do aborto após 22 semanas.
Na entrevista coletiva, Parente, do CFM, discordou que a norma é ilegal argumentando que o manual feito sob sua gestão no ministério também foi alvo de questionamentos jurídicos no Supremo Tribunal Federal (STF) e não foi revogado. Afirmou ainda que o Código Penal é de 1940, quando ainda não existia o procedimento de assistolia fetal.
O Ministério da Saúde foi procurado pelo Estadão no início da tarde desta quinta-feira para se posicionar sobre a resolução, mas ainda não respondeu.