Chip cerebral devolve capacidade de comunicação a paciente com paralisia total
O dispositivo, criado pelo Centro Wyss de Pesquisa em Bio e Neuroengenharia, de Genebra, foi implantado há dois anos no paciente, um homem com cerca de 34 anos vítima de esclerose lateral amiotrófica
Um grupo de neurocientistas da Suíça e da Alemanha anunciou em um estudo nesta semana ter conseguido pela primeira vez usar um chip cerebral para devolver alguma capacidade de comunicação a um homem que, não fosse por essa tecnologia, seria incapaz de se comunicar.
O paciente, vítima de uma paralisia muscular que atinge todo seu corpo, consegue agora transmitir vontades a seus médicos e enfermeiros usando apenas a força do pensamento.
O dispositivo, criado pelo Centro Wyss de Pesquisa em Bio e Neuroengenharia, de Genebra, foi implantado há dois anos no paciente, um homem com cerca de 34 anos vítima de esclerose lateral amiotrófica, doença que afeta neurônios do sistema motor. Só após o sucesso da tecnologia ser referendada em um estudo auditado, porém, os pesquisadores revelaram como ela tem ajudado esse paciente.
A tecnologia, segundo estudo dos cientistas na revista Nature Communications, ainda está em estágio inicial. Ela consiste agora de dois chips, cada um com 64 pequenos eletrodos que ficam conectados ao córtex motor, área na superfície do cérebro de onde partem os comandos conscientes para movimentação de músculos. Ao alternar entre dois padrões de intenções de movimento, o homem consegue responder "sim" e "não" a perguntas feitas pelos médicos, e toda a comunicação é feita com base nessa escolha binária.
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Para transmitir mensagens, os cientistas alternam letras do alfabeto mostradas ao paciente, que pode montar palavras para comunicar aos médicos seu estado e suas necessidades. A comunicação é lenta (cerca de uma letra por minuto), mas representa um avanço importante na neurociência.
Ele é portador de paralisia induzida pela esclerose amiotrófica foi o primeiro paciente a ser tirado de uma condição conhecida como "síndrome do encarceramento".
Neurologistas descrevem essa condição como uma em que pacientes são plenamente conscientes, podendo ver e escutar, mas perderam toda a capacidade de movimento voluntário, por isso não conseguem se comunicar.
"Nós demonstramos que um paciente paralisado em um estado completo de 'encarceramento' podia escolher livremente letras para formar palavras e frases, expressando seus desejos e experiências", relatam no estudo os pesquisadores, liderados pelo engenheiro Ujwal Chaudhary, da Universidade de Tübingen (Alemanha), parceira dos suíços no projeto. "Esse estudo de caso fornece evidência de que comunicação de vontades com base apenas no estado do cérebro é algo possível."
Algumas vítimas de esclerose lateral amiotrófica não chegam a progredir totalmente até a condição total de 'prisão interior'. O físico britânico Stephen Hawking (1942-2018) era portador da doença, mas manteve quase até o fim da vida um último recurso para se comunicar com as pessoas. Ele usava músculos da bochecha para controlar um dispositivo de escolha de palavras conectado a um computador com voz. O paciente do Centro Wyss, porém, não consegue mover mais nem sequer os olhos.
Antes de a doença progredir para esse estado de encarceramento total, os médicos obtiveram consentimento do paciente e da família para fazer o experimento, caso a esclerose realmente progredisse a um ponto sem volta. Quando o voluntário atingiu esse estado, os pesquisadores fizeram uma cirurgia para implantar os chips, e no dia seguinte já começaram a tentar se comunicar com o homem.
O processo não é simples e direto, porque antes que isso fosse possível os pesquisadores tiveram que treinar os comandos cerebrais. Conversando com o voluntário, que tinha audição preservada, eles conseguiram capturar intenções de movimentos oculares do homem e transformá-los em sim e não. (Logo antes de entrar em paralisia total, ele estava usando os olhos para se comunicar, por isso os médicos optaram por explorar no cérebro do homem a área associada a movimentos oculares.)
Uma boa parte do esforço de desenvolvimento da nova tecnologia foi dedicada à decodificação dos sinais elétricos captados no cérebro para envio dos comandos. A leitura dessas informações não é trivial e cientistas tiveram que recorrer a software de inteligência artificial para a tarefa.
Uma vez transposta essa barreira, os cientistas abriram um canal de comunicação. No estudo da Nature Communication eles descrevem várias das conversas que tiveram com o paciente. Nos três primeiros dias, usando a comunicação binária para triagem de letras em um alfabeto, ele conseguiu soletrar seu próprio nome, e os nomes de seu filho e de sua mulher.
Muitas das primeiras sessões foram aproveitadas para que ele dissesse aos médicos como ele gostaria de ser posicionado em sua cama e cuidado. A conversas foram evoluindo e após 250 dias o homem já havia se habituado a essa forma de comunicação rudimentar, mas crucial para seu bem estar.
— Por favor, toquem disco da banda Tool em volume alto e me deem uma cerveja — afirmou o homem após meio ano de internação. Após mais de um ano de uso, ele usava a boa parte das sessões de comunicação para expressar suas preferências gastronômicas.
— Hoje quero batata com curry depois bolonhesa e sopa de batata.
Por limitações da tecnologia, os médicos não deixam o sistema de comunicação ligado o tempo todo, apesar de o paciente pedir que esteja ativo pelo maior tempo possível. Em vários dos diálogos mais recentes descritos no estudo, o homem usa as oportunidades de expressão para convidar seu filho para assistir a filmes da Disney com ele.
Os cientistas do Wyss trabalham agora em aprimorar a tecnologia para que possa saltar do status experimental para o clínico.