Parque alagável? Conheça soluções que tornam cidades mais preparadas para alagamentos e enchentes
Projetos urbanísticos de construção de espaços alagáveis, como o parque anunciado recentemente no Recife, buscam evitar danos provocados pelas cheias.
Virou rotina. Nas contas de Ronaldo Freitas, esta é a quarta vez que ele e a família são vítimas de enchentes. No sábado 2 de julho, assim como em 2010, 2011 e 2017, o rio Una transbordou em três ruas do bairro de São Sebastião, em Palmares, onde o pintor de 48 anos vive com a esposa e a sogra de 91. Com as águas, foram perdidos dois guarda-roupas, que tinham ganhado de doação nos desastres anteriores, e quase todo o material de trabalho: pincéis, rolo e balde de tinta, pacote de lixa.
Ronaldo é também vice-presidente da Associação de Moradores da comunidade. Ele conta que estava na sede do coletivo, organizando um evento solidário, quando percebeu que o curso d’água subia mais rápido que o normal.
“Eu moro lá já faz mais de 40 anos e tenho uma vasta experiência nessa questão do rio encher. A gente começou a arrumar as coisas por volta das 8h para tentar não perder tudo de novo”, diz. Desde então, Ronaldo segue abrigado na casa de um amigo e não volta por ainda haver risco de um novo transbordamento. “Graças a Deus, não teve ninguém acidentado ou morto”, pondera.
Leia também
• Mudanças climáticas aumentaram a intensidade das chuvas em Pernambuco, dizem pesquisadores
• Moradores de Palmares precisam recomeçar após cheias
• Prefeitura do Recife abre licitação para construção de Parque Alagável nas margens do Rio Tejipió
A cheia daquele fim de semana na Mata Sul é mais um capítulo da série de temporais que, desde maio passado, já matou 132 pessoas (ainda há um desaparecido) e deixou milhares de famílias desabrigadas em Pernambuco.
Uma tragédia agravada pela ocupação desordenada de áreas de risco e causada por chuvas de cerca de 200 milímetros que, não fossem as mudanças climáticas, seriam 20% menos intensas, conforme calcula um estudo feito por mais de 20 cientistas de sete países da rede internacional World Weather Attribution.
Desastres mais frequentes
O alerta não é novo. Em matéria desta Folha publicada em setembro do ano passado, o pesquisador Abelardo Montenegro, professor de Recursos Hídricos da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), já atentava para o que chamou de “agravamento dos extremos”.
“Temos períodos mais chuvosos em algumas regiões, aumentando o risco de inundações, e, em outras, escassez. [...] A alteração pluviométrica é um fato”, ressaltou. Em outras palavras: os fenômenos climáticos que assolam o Estado, em especial, a seca no Sertão e as cheias no Litoral, vão se tornar mais graves e frequentes.
Parte do problema reside na própria capacidade de adaptação do espaço urbano à geografia do território onde se encontra. Diante disso, de que forma as cidades pernambucanas podem se preparar para as intempéries da natureza? Quais soluções o urbanismo, com a ajuda da tecnologia, tem a oferecer para evitar os desastres que elas provocam?
Feito para alagar
Neste cenário de busca por respostas a uma urgência que perdura há décadas, a prefeitura do Recife - cidade que está entre as 20 mais vulneráveis aos efeitos do aquecimento global no mundo - anunciou, no mês passado, um projeto que, para muitos de nós, pode parecer inusitado, mas que, há tempos, é uma realidade mundo afora: a construção de um parque alagável às margens do rio Tejipió, nos bairros de Areias e Ipsep, localizados, respectivamente, nas Zonas Oeste e Sul.
Feito para acumular água, como o próprio nome sugere, esse tipo de espaço já existe em cidades da Europa e da China, não apenas em áreas ribeirinhas, mas em qualquer local atingido frequentemente por chuvas fortes em determinada época do ano.
“Ele é desenhado para ser alagado mesmo”, confirma a diretora de Planejamento e Projetos da Autarquia de Urbanização do Recife (URB), Luana Gentil. O objetivo é concentrar a captação de água de modo que ela escoe sem se espalhar pelas ruas próximas.
Segundo a gestora, tudo no parque é projetado para absorver grande quantidade de água, contando com uma vegetação específica, que inclui 15 espécies, como açaí-do-pará, borboleta e bananeira. “O mobiliário será de concreto e os brinquedos vão ficar em campo de areia, com uma base permeável. Outra prioridade é a inserção de solo natural”, adianta Gentil.
Além da construção do parque, o projeto prevê o alargamento da calha do rio e outras intervenções no entorno. A obra, que está em processo de licitação para a escolha da empresa responsável, deve durar cinco meses, com previsão de início em setembro. O investimento é estimado em R$ 1,35 milhão.
Cidade-esponja
Empreendimentos como o parque alagável fazem parte de um conceito conhecido, na arquitetura, como “cidade-esponja”.
“É um termo que tem sido adotado para descrever uma cidade muito rica em vegetação. Isto porque a vegetação retém muita água. Ela é uma esponja. Boa parte da chuva que cai não é rapidamente escoada e transportada [como é] pela drenagem urbana, mas fica retida na vegetação”, explica o arquiteto Milton Braga, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e sócio-fundador do escritório MMBB.
Entre os espaços presentes nesse “tipo” de ambiente urbano, estão jardins, telhados e muros verdes, piscinões e calçadas permeáveis, além dos parques alagáveis (veja no infográfico). Essas estruturas são viáveis não só em projetos públicos (caso dos parques alagáveis) mas também em residências e prédios privados (como os jardins e os tetos verdes).
“A constituição de uma grande massa vegetal numa cidade é algo que pode ser feito de modo muito rápido com a participação popular. Em vez de ser uma intervenção de cima para baixo, ela pode ser desenvolvida a partir de uma política pública que estimule os cidadãos individualmente a se envolverem nos seus imóveis com a vegetação, seja nos muros ou fachadas, seja nas coberturas”, ressalta o professor.
Aterros e barragens
Grande parte dos transtornos hoje enfrentados pela população nos dias de chuva é resultado dos inúmeros aterramentos feitos a partir das ocupações de áreas de rios e córregos ao longo dos séculos, deixando a água com menos espaço para circular.
“Se você olhar o mapa antigo da cidade, você vê que o Recife era muito menor. Foi aterrado por cima dessa água, e ela procura o seu lugar. E há inúmeras formas de lidar com as águas, por meio de diques, reservatórios para retardar essa chuva, bombeamentos. Os parques alagáveis são uma dessas formas”, informa a professora de Arquitetura e Urbanismo Lea Cavalcanti, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Fora da capital, nos centros urbanos da Zona da Mata, outra estrutura fundamental para a prevenção das cheias são as barragens, como a de Serro Azul, que opera em Palmares, além da preservação da cobertura vegetal no entorno dos ursos d’água.
“No interior, o que acontece muito é que as margens dos rios não estão preservadas com a mata nativa, e o rio vai assoreando, se tornando mais raso e enchendo quando chove. E a construção de barragem é uma solução de engenharia que segura ou abre essa água conforme a necessidade. As pessoas vão retirando lixo e ocupando as margens por não ter onde morar. Isso resolve um problema de habitação, mas traz um problema ambiental”, observa a professora.