Ciência avança em respostas para peculiaridades do novo coronavírus
Pesquisas relacionadas ao vírus que parou o mundo buscam entender reinfecções e imunidade. Precisão de testes embaralha cenário de descobertas.
Na primeira vez em que testou positivo para Covid-19, em maio, Isabela Matos não sentiu nada. Com a mãe dela, que mora no mesmo apartamento, no bairro das Graças, Zona Norte do Recife, foi o contrário. “Ela estava com sintomas, teve diarreia, enjoo, um pouco de febre, coriza, tosse, mas o resultado deu negativo. Até hoje a gente não sabe se ela teve coronavírus e deu falso negativo ou se foi outra virose”, lembra. Quatro meses depois, a advogada de 28 anos começou a sentir dores de garganta e cabeça. Resolveu fazer um novo RT-PCR, o “exame do cotonete”, que detecta a presença do Sars-Cov-2 com maior precisão. O resultado confirmou o prognóstico, e ela logo teve perda de olfato e paladar. Agora está bem.
Só o primeiro parágrafo dessa história pode dar um nó na cabeça de muita gente. Isabela teve Covid duas vezes? Não é simples dizer. Em maio, após 14 dias isolada, ela foi fazer o teste sorológico para saber se tinha criado a imunidade para o novo coronavírus. Deu negativo.
“Consultei o mesmo pneumologista que acompanhou a gente da primeira vez, e ele falou que não havia casos documentados de reinfecção em Pernambuco e que o que poderia ter acontecido era o meu caso ter sido falso positivo no começo, apesar de ser raro [o RT-PCR dar falso positivo], ou uma reinfecção pelo fato de eu ter tido muito leve, com uma carga viral muito baixa, e meu próprio organismo ter combatido a doença sem precisar criar uma imunidade”, conta.
No mundo, um caso de reinfecção por Sars-Cov-2 foi confirmado, em um homem de 33 anos na China. Em outros lugares, inclusive no Brasil, há relatos de pessoas que podem ter sido infectadas mais de uma vez. Seria o caso de dois profissionais de saúde de Pernambuco, descritos em um artigo publicado na última quinta-feira (1º). No entanto, sem confirmação.
Infectologista dos hospitais das Clínicas de Pernambuco (HCP) e Oswaldo Cruz (Huoc), Danylo Palmeira ressalta que ainda não há certeza se a resposta imune que o indivíduo desenvolveu tem durabilidade suficiente para evitar um novo contágio. “A gente não pode afirmar que a imunidade contra o novo coronavírus é duradoura e que os anticorpos são neutralizantes. Eu posso ter uma doença agora, ter um aumento na produção de anticorpos e, com o tempo, essa produção declinar”, explica.
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Outra hipótese que pode ser levantada em relação ao caso de Isabela é que fragmentos de material genético do vírus tenham persistido nas vias respiratórias e, mesmo sem provocar uma infecção, foram detectados no exame. “Como a gente tem uma miscelânea de vírus respiratórios circulando, como H1N1, H3N2 e adenovírus, você pode ser infectado por um deles e, coincidentemente, flagrar um RT-PCR para coronavírus de uma infecção antiga”, observa o infectologista Danylo Palmeira.
Diante de tantas possibilidades, a melhor maneira de confirmar se houve uma reinfecção seria por meio de um sequenciamento molecular, exame de análise laboratorial que faz um mapeamento do vírus detectado em um paciente, comparando os patógenos encontrados na primeira e na segunda vez em que a pessoa foi diagnosticada. No entanto, esse tipo de procedimento não se faz em tratamento de rotina.
Aos poucos, a ciência avança na busca por respostas aos muitos mistérios em torno do novo coronavírus (veja no infográfico). Boa parte deles são questões relacionadas à imunidade e à capacidade de reação do organismo. Outras variáveis complicadas nessa matemática são, como visto na história de Isabela, a própria precisão dos testes utilizados para diagnóstico da doença.
Positivo ou negativo?
Muito se questiona da capacidade que os testes disponíveis no sistema de saúde têm para detectar a presença do vírus no organismo. Mas isso depende também do momento em que o exame é feito. Hoje, há basicamente dois tipos de teste para Covid-19: os sorológicos, que retiram uma pequena amostra de sangue, e o RT-PCR, que extrai uma parte da mucosa do paciente.
“O teste sorológico procura anticorpos, IgA, IgM e IgG. Toda vez que nosso corpo entra em contato com alguma infecção, ele produz anticorpos, mas isso leva um tempo. No caso do coronavírus, em média de dez dias, talvez a partir de sete. Então, se o tempo de infecção pelo coronavírus em fase de doença leva até o décimo dia, o anticorpo serve mais para me dar um diagnóstico do passado, para saber se eu tive contato com o vírus”, esclarece o infectologista Bruno Ishigami, do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc).
O segundo, considerado “padrão-ouro” para Covid-19, detecta partículas do agente infeccioso. “Ou seja, ele mede a infecção no momento em que ela está ocorrendo. Para a gente conseguir acompanhar a epidemia, o que serve é o RT-PCR porque eu vejo quantos casos ativos eu tenho. Aí tem uma limitação do Ministério da Saúde de fazer o teste até o sétimo dia de sintomas. Depois disso, a quantidade de vírus está baixa, provavelmente não vai detectar nada”, informa.
De acordo com o médico Danylo Palmeira, são baixas as chances de um exame RT-PCR dar um falso positivo, ou seja, acusar a presença do vírus sem que a pessoa esteja infectada. No entanto, a taxa de positividade do teste é de 63%, o que significa uma maior probabilidade de dar falso negativo.
“Se eu tiver um indivíduo doente, sintomático, e coletar o RT-PCR com a técnica correta, apenas 63% vão dar positivo. Então, eu posso estar com a doença e o meu exame ser negativo”, diz. Uma das explicações para isso, segundo o biólogo e doutor em Genética Ronald Moura, é que, em alguns casos, o vírus, no momento do exame, já migrou das vias respiratórias, onde a coleta é feita, para outras partes do corpo. “A PCR é a melhor forma, mas a fonte biológica, onde você busca o vírus, está altamente relacionada com a fase da doença em que você está”, pondera.
Dengue e fungos
Outro fator que às vezes compromete a precisão dos testes abriu caminho para uma nova linha de pesquisa. Uma possível correlação entre o novo coronavírus e o vírus da dengue está sendo estudada por um grupo de pesquisadores brasileiros.
O estudo, que analisou dados epidemiológicos de 15 países da América Latina, África e Ásia, identificou que locais afetados pela alta no número de casos de dengue registrada antes do surgimento da Covid-19 apresentaram baixas taxas de infecção por Covid-19. Além disso, foi constatada uma queda brusca nas notificações da doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti desde a chegada do Sars-Cov-2 a essas localidades.
“A explicação mais usada era que essa queda tenha se dado por subnotificação. Mas isso foi verificado em outros lugares do mundo”, relata o professor e neurocientista Miguel Nicolelis, coordenador do Comitê Científico do Consórcio Nordeste. “Quando estamos no meio dessa análise, descobri um artigo de um grupo israelense mostrando que, de 95 amostras de soro de pessoas que tiveram dengue ano passado, eles encontraram 22 falsos positivos para o novo coronavírus. E eles também mostraram falso positivo na direção oposta. Eles tinham 55 casos de Covid, em que demonstraram 12 que testaram falso positivo para dengue. Além disso, outro grupo de cientistas, que não sabiam da pesquisa israelense, viu que, de 13 amostras de pessoas que tiveram dengue em 2017, cinco deram falso positivo para Covid”.
A partir dessas descobertas, Nicolelis pretende verificar se pessoas infectadas pela dengue produzem anticorpos com possível resposta imunológica contra o novo coronavírus.
“Derivei essa hipótese de que pode haver algum tipo de reação cruzada. E identifiquei proteínas, que têm certa similaridade e produzem uma resposta imunogênica em ambos os vírus”, conta. “Agora o que a gente precisa fazer é usar amostras de pacientes que tiveram dengue no ano passado e analisar em larga escala para ter uma estatística mais robusta”. Ainda de acordo com o cientista, não foi encontrada nenhuma correlação com o vírus da chikungunya, doença que, assim como a dengue, é transmitida pelo Aedes aegypti.
No meio de tantas hipóteses e ideias, a comunidade científica procura soluções, no mínimo, surpreendentes. Na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), há pesquisas que vão no sentido de produzir uma vacina com fungos similares aos utilizados na fabricação de pães e cervejas. O estudo, financiado pelo Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), deve entrar na fase de testes pré-clínicos, feitos com animais, no primeiro semestre do ano que vem.
Genética
Em seis meses de pandemia, também não se chegou a uma conclusão sobre o porquê de a Covid-19 ser inofensiva para muitos e extremamente letal para outros tantos. Os fatores de risco já conhecidos, como doenças preexistentes e idade avançada, não dão conta de prever quem está mais ou menos vulnerável à infecção. Basta ver os casos de jovens e crianças fora desses grupos que desenvolveram a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) ou a Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), parte deles chegando à morte.
No meio desse cenário de dúvidas, alguns indícios começam a aparecer. Um deles pode estar no material genético de cada um. Em estudo divulgado no fim de setembro, pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Instituto Materno Infantil Burlo Garofolo, hospital pediátrico localizado em Trieste, na Itália, descobriram formatos específicos - chamados de alelos - de um tipo de gene, o HLA, e que são capazes de reagir ao Sars-Cov-2.
Idealizador da pesquisa, o biólogo e doutor em Genética Ronald Moura diz que essas moléculas, ao reconhecerem a proteína do vírus, acionam o sistema imunológico, produzindo uma resposta mais rápida contra a infecção. Mas não é todo mundo que tem esse material genético.
“É uma questão evolutiva. A nossa espécie, desde que surgiu no continente africano há mais de 150 mil anos, se expandiu no mundo inteiro. Conforme o ser humano foi se fixando nos lugares, aquelas pessoas tinham mais probabilidade de se reproduzirem entre si do que com pessoas de outros locais. Isso foi fazendo com que a composição genética de cada população fosse se tornando diferenciada. Com a globalização, isso vem mudando”, analisa Moura, acrescentando que a miscigenação, característica no Brasil, pode ajudar a fortalecer o sistema imunológico à medida que favorece uma maior diversidade de alelos no organismo.
Para identificar os grupos que apresentam esse perfil imunológico para o novo coronavírus, o geneticista avalia que seria necessário fazer testes moleculares semelhantes ao RT-PCR hoje utilizado para o diagnóstico da Covid-19. “Essas pessoas teriam uma chance maior de ter sintomas mais brandos por terem esses alelos”, diz o pesquisador. “O SUS (Sistema Único de Saúde) e a rede privada fazem esse tipo de exame, mas não para o Sars-Cov-2. Para transplante de órgãos e doenças multifatoriais, como diabetes tipo 1, a resposta do HLA é importantíssima. Mas, para doenças infecciosas, não é comum esse tipo de teste. O foco maior é saber se a pessoa tem o vírus ou não”.
Apesar de dar uma previsão de quem seria mais suscetível, a principal vantagem do teste molecular no uso clínico seria fornecer uma avaliação mais precisa de como o quadro clínico dos pacientes que chegam com os sintomas da infecção vai evoluir.
“Saber se esse paciente terá uma resposta inicial mais forte ou mais dificultosa e emitir um sinal de alerta para evitar que se evolua para uma SRAG. Acho que esse tipo de estudo contribui mais nesse sentido do que para a prevenção em si, que, de fato, é o isolamento social, uso de máscara e higienização”, afirma.