Cientistas propõem que Covid-19 seja tratada como sindemia; entenda o termo
Publicação na revista científica The Lancet sugere tratar os impactos da doença em todo o mundo com um novo rótulo
Cientistas publicaram, no final de setembro, na revista científica The Lancet um artigo que propõe definir a Covid-19 como uma sindemia. O texto é assinado pelo editor-chefe da revista, Richard Horton. Na publicação, o pesquisador diz que a doença alcançou um patamar diferente de qualquer outra pandemia já enfrentada pela humanidade na História.
Tratada inicialmente como uma 'pneumonia desconhecida' quando os primeiros casos começaram a surgir em Wuhan, na China, a Covid-19 foi classificada como pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 11 de março. O termo se refere a uma epidemia - quando surtos de uma doença ocorrem em várias regiões - que se estende a níveis mundiais.
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A palavra sindemia nada mais é do que a junção das palavras “sinergia” e “pandemia”. “Sinergia” significa algo que, quando somado, o todo é maior do que a soma das partes. Ou seja, diversos impactos da Covid-19, como os fatores socioeconômicos atrelados à doença e até mesmo outras morbidades, acabam tornando o cenário pior. Em resumo, é como se a soma de 1+1, nesse cenário sinérgico, desse mais do que 2.
"A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamos exige não apenas tratar cada aflição mas também abordar urgentemente as desigualdades sociais subjacentes que as afetam, ou seja, a pobreza, a moradia, a educação e a raça, que são fatores determinantes poderosos da saúde", diz Horton no artigo. O termo, portanto, pretende explicar de uma maneira mais aprofundada o comportamento e as consequências do vírus no mundo.
A definição de “sindemia” foi dada pelo antropólogo americano Merrill Singer, nos anos 1990. Segundo ele, a sindemia é definida como “quando duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores do que a mera soma dessas duas ou mais doenças”.
Desde o surgimento da Covid-19, pessoas com doenças como obesidade, diabetes e hipertensão foram incluídas no grupo de risco, e se sabe que o impacto nelas é especialmente grave. O vírus portanto, não age sozinho, e, quando combinado com outras doenças especialmente desencadeadas pela desigualdade social traz ainda mais complicações.
Richard Horton afirma que a pandemia da Covid-19 não é apenas uma pandemia, mas várias juntas. Embora as doenças cardiovasculares e idade sejam os principais fatores de risco associados ao agravamento do quadro e morte por Covid-19, outros fatores, como socioeconômicos, afetam como as populações sobrevivem à crise sanitária do coronavírus.
O editor acrescenta ainda que a Covid-19 é uma "emergência de saúde crônica agravada" e seu impacto no futuro está sendo ignorado.
"As doenças não transmissíveis têm desempenhado um papel crítico no mais de um milhão de mortes causadas pela Covid-19 até o momento, e continuarão a influenciar a saúde de todos os países depois que a pandemia for embora. À medida que retomarmos nossos sistemas de saúde à raiz de doenças como a Covid-19, este estudo sobre a carga mundial de morbidade e mortalidade oferece um meio de direcionar qual a maior emergência e como isso difere entre os países."
Estudo
No estudo publicado em The Lancet, desenvolvido pelo Instituto de Métricas e Avaliação da Saúde (IHME, na sigla em inglês), da Universidade de Washington, os pesquisadores avaliaram 286 causas de morte, 369 doenças e lesões e 87 fatores de risco em 204 países e territórios em todo o mundo.
Os dados mostram como o mundo, em especial os sistemas de saúde pública, não estavam preparados para uma pandemia e, pior, como fatores de risco tratáveis e evitáveis, como obesidade e hiperglicemia, não têm recebido a devida atenção dos programas de saúde globais.
Apoiado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), o estudo que avalia a carga global das doenças é realizado anualmente como forma de analisar quais as principais causas de morte e de perda de qualidade de vida, bem como a mudança de expectativa de vida nos últimos 30 anos.
O impacto da Covid-19 na saúde das pessoas não será apenas sentido em 2020 e em 2021, afirmam os pesquisadores, mas nos anos seguintes também.
Entre os fatores que agravaram a crise está a ineficácia da saúde pública para impedir o aumento de fatores de risco, como programas nacionais de conscientização e prevenção para as chamadas doenças não transmissíveis (obesidade, hipertensão, diabetes, colesterol alto).
Para Christopher Murray, diretor do IHME e principal autor do estudo, o aumento da expectativa de vida no mundo é um indicativo positivo ao avaliar doenças infecciosas que assolavam países da África subsaariana até meados dos anos 2000, como Aids e tuberculose. No entanto, a maior perda de expectativa de vida global hoje está relacionada a fatores de risco como doenças cardiovasculares, dietas desequilibradas e poluição do ar.
Em parte, as melhoras em cuidado neonatal e de assistência materna elevaram a sobrevida e diminuíram o risco de morte prematura, principalmente em crianças menores de dez anos, mas a mesma atenção não foi dada às faixas etárias mais velhas.
"Não estamos conseguindo mudar comportamentos pouco saudáveis, em particular aqueles relacionados à qualidade da alimentação e atividade física, em parte devido à falta de atenção regulatória e de financiamento para pesquisas sobre comportamento e saúde pública", afirma Murray.
As principais diferenças observadas entre os países desenvolvidos e as nações de renda média ou baixa em relação aos fatores de risco estão no tratamento de água e esgoto e atenção neonatal e pós-parto.
Em grande parte da América Latina, na América do Norte, na Ásia e Europa, a hipertensão, o colesterol alto, o excesso de peso e o tabagismo são as principais causas de problemas de saúde. Na Oceania, a desnutrição e a poluição do ar estão entre os principais riscos. Já a África subsaariana lida com desnutrição, poluição da água e poluição do ar.
A doença metabólica, que alia obesidade, diabetes e colesterol alto, é apontada como um dos principais fatores de perda de vida saudável nos últimos 30 anos na Europa ocidental e América do Norte.
Para Emmanuela Gakidou, pesquisadora e coautora do estudo do IHME, apenas a informação dos fatores de risco não é suficiente, é preciso agir. "A incidêndia da doença metabólica passou de 10,4% em 1990 para 20%, em 2019. Com base nas lições aprendidas em décadas de controle do tabagismo, quando há um risco significativo para a saúde da população, como a obesidade, pode ser necessário que o governo aja por meio de regulamentação, impostos e subsídios."
No Brasil, cerca de 55,4% da população em 2019 apresenta sobrepeso, segundo dados do Vigitel (Sistema de Vigilância de Fatores de Risco para doenças crônicas não transmissíveis), do Ministério da Saúde.
Embora a primeira e segunda principais causas de morte por doença no País sejam doenças vasculares (cardíacas e cerebrais, respectivamente), o aumento de peso ocupa o primeiro lugar nas doenças não transmissíveis associadas à perda de vida saudável.