Cientistas usam IA para mapear trilhões de vírus que vivem no corpo humano; entenda
O Programa Viroma Humano analisará amostras de milhares de voluntários em um esforço para entender como os vírus afetam a saúde
Pessoas saudáveis estão repletas de vírus que não nos fazem adoecer, e cientistas estimam que dezenas de trilhões de vírus vivem dentro de nós, embora apenas uma fração deles tenha sido identificada. Por isso, neste ano, cinco universidades se unirão numa busca sem precedentes para identificar esses vírus. Elas coletarão amostras de saliva, fezes, sangue, leite e outros de milhares de voluntários.
A grande maioria desses virus são benignos, e alguns podem até ser benéficos. Mas, não sabemos ao certo, pois grande parte do chamado viroma humano permanece um mistério. Nesse contexto, o esforço, que terá duração de cinco anos e será chamado de Programa do Viroma Humano, conta com o apoio de 171 milhões de dólares (cerca de R$ 976 milhões) em financiamento federal e examinará as amostras com sistemas de inteligência artificial, na esperança de aprender como o viroma humano influencia nossa saúde.
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— Acho que isso vai inundar os dados que tivemos até agora, — disse Frederic Bushman, microbiologista da Universidade da Pensilvânia e um dos líderes do programa.
As primeiras pistas sobre o viroma humano surgiram há mais de um século. Ao analisar amostras de fezes, os cientistas descobriram vírus conhecidos como fagos, capazes de infectar as bactérias presentes no intestino. Fagos também foram encontrados na boca, nos pulmões e na pele.
Posteriormente, os pesquisadores identificaram vírus que infectam nossas próprias células sem causar sintomas significativos. Por exemplo, a grande maioria da população mundial é infectada por citomegalovírus, que podem colonizar praticamente todos os órgãos.
No início dos anos 2000, novos métodos de sequenciamento genético levaram os cientistas a encontrar ainda mais vírus na saliva, no sangue e nas fezes. Essa tecnologia também permitiu estimar o número de vírus em nossos corpos, contando as cópias dos genes virais. Descobriu-se que cada grama de fezes contém bilhões de fagos.
O intestino de cada pessoa pode abrigar centenas ou até mil espécies de fagos. Contudo, quando os biólogos comparam indivíduos, constatam que muitas espécies presentes em uma pessoa estão ausentes em outra — mesmo entre pessoas casadas. Quanto mais pessoas são estudadas, mais espécies de fagos são descobertas.
— Estou esperando dezenas de milhões de espécies, — afirmou Evelien Adriaenssens, bióloga de fagos no Instituto Quadram, em Norwich, Inglaterra.
Os vírus que infectam as células humanas se revelaram surpreendentemente diversos. Em 1997, pesquisadores no Japão, ao examinar o sangue de um paciente, descobriram uma família totalmente nova de vírus, que passou a ser conhecida como anelovírus. No mês passado, um estudo revelou mais de 800 novas espécies de anelovírus, elevando o total de espécies conhecidas para mais de 6.800.
Alguns estudos recentes sobre o viroma humano levantam questões acerca da própria definição de vírus. Um vírus padrão consiste em uma cápside proteica que contém genes codificados em DNA de fita dupla ou RNA de fita simples. Porém, os cientistas estão descobrindo que nossos corpos também abrigam minúsculos anéis de RNA livre.
Ainda há muito do viroma humano que permanece desconhecido. Os vírus são tão pequenos que podem se esconder, imperceptíveis, dentro das células. Alguns chegam a inserir seus genes no DNA da célula hospedeira, onde podem permanecer ocultos por anos antes de se replicarem.
— Ferramentas totalmente novas terão que ser desenvolvidas, — afirmou a Dra. Pardis Sabeti, bióloga computacional da Escola de Saúde Pública Harvard T.H. Chan.
A Dra. Sabeti e seus colegas estão desenvolvendo um sistema de inteligência artificial que o Programa do Viroma Humano empregará para descobrir características sutis dos genes virais. Os pesquisadores, então, tentarão desvendar o que todos esses vírus estão fazendo em nossos corpos.
Tradicionalmente, os cientistas tratavam os fagos como predadores das bactérias, eliminando-as impiedosamente para produzir mais cópias de si mesmos. Contudo, experimentos recentes apontam para uma relação muito mais complexa. — Eles não estão numa luta até a morte, — afirmou Colin Hill, microbiologista do APC Microbiome Ireland, um centro de pesquisa em Cork. — Eles estão em parceria.
No corpo humano, por exemplo, os fagos geralmente não exterminam as bactérias hospedeiras. E as bactérias podem se beneficiar dessa relação amistosa com os fagos, que podem transferir genes de um microrganismo hospedeiro para outro, possivelmente aumentando sua sobrevivência.
Essa parceria pode ser benéfica para a nossa saúde também. Estudos recentes sugerem que os fagos distribuem genes de defesa que seus hospedeiros podem usar para conter os patógenos invasores. Além disso, os citomegalovírus podem ajudar a nos proteger contra o câncer de pele.
O Dr. Shadmehr Demehri, imunologista do câncer em Harvard, e seus colegas encontraram evidências de que os citomegalovírus se tornam ativos em células da pele danificadas pelo sol. Essas células infectadas produzem proteínas virais, que atraem a atenção das células imunes próximas. Estas, por sua vez, atacam as células danificadas — o que pode impedir que elas evoluam para o câncer.
Os estudos do Dr. Demehri também demonstraram que os papilomavírus humanos podem ajudar a destruir células da pele que correm risco de se transformar em tumor.
— É uma mudança de paradigma em como pensamos os vírus em geral, — concluiu o Dr. Demehri.