Colapso no RS mostra que Brasil precisa de revisão ampla dos riscos de desastres climáticos
Aeroporto, estradas, ferrovias, redes de energia e transporte público não puderam operar ou foram danificados seriamente. O custo da reconstrução ainda está sendo calculado
As chuvas no Rio Grande do Sul danificaram ou interditaram uma série de infraestruturas como aeroportos, estradas, ferrovias, redes de energia elétrica e transportes públicos. O custo da reconstrução ainda será calculado, mas a tragédia já trouxe à luz uma realidade: os riscos de eventos climáticos extremos para a infraestrutura precisam ser mais bem mapeados por concessionárias, governos e seguradoras no país.
É um passo necessário para investir mais em prevenção e estabelecer uma engenharia financeira capaz de garantir recursos para reconstruções.
Esse processo já está em curso, apontam executivos do setor, mas muitas concessões de infraestrutura ainda têm contratos que não preveem os riscos climáticos — o que motiva ações em busca de reequilíbrios financeiros dos acordos.
Nesses casos, geralmente a conta recai sobre os cofres públicos. Há uma defasagem na área de de seguros e resseguros para grandes equipamentos de infraestrutura no país. A tragédia gaúcha, para especialistas, pode representar uma virada de página nesse debate.
Via de regra, os contratos de infraestrutura concedidas à iniciativa privada estabelecem que eventos imprevisíveis, classificados como “caso fortuito ou de força maior”, devem ser arcados pelo poder público. No caso de eventos climáticos, nem sempre é claro o que pode ser considerado imprevisível ou extraordinário.
Não há definições sobre o que seria um volume de chuvas, um período de estiagem ou uma velocidade de vento considerados anormais.
Ao longo do tempo, com as mudanças climáticas mais evidentes, houve uma evolução nos contratos nesse sentido. Entre as distribuidoras de energia, a maioria dos acordos é da década de 1990 e não contempla os riscos dos temporais extremos, por exemplo. É o caso da Enel, em São Paulo, que herdou um contrato de 1998 da Eletropaulo.
Os assinados na década passada, como o da concessão do Aeroporto de Guarulhos (SP), em 2012, fixam que eventos de força maior sem cobertura de seguro disponível no Brasil serão pagos pelo poder público. Contratos novos são mais detalhados, como o da futura privatização da Sabesp, estatal paulista de saneamento. Ele fixa parâmetros baseados em séries históricas para definir o que é ou não uma seca imprevisível.
Indefinição impera
A lei de parcerias público-privadas (PPPs), de 2004, obriga contratos a preverem quais prejuízos o poder público e o setor privado devem assumir. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), por exemplo, entende que riscos geológicos considerados ordinários são de responsabilidade de concessionárias de rodovias, e os extraordinários, da União — mas especialistas defendem a necessidade de parâmetros mais detalhados. Para calcular o impacto econômico dos riscos e adaptar as premissas financeiras dos contratos é preciso aperfeiçoar o mapeamento das ameaças.
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— Nem toda situação de crise é provocada por força maior. Muitas vezes, uma chuva acima da média aumenta os buracos numa via. Não é uma catástrofe natural, mas também não é algo para o qual estávamos preparados. Esse tipo de situação precisa ser aprofundada nas concessões — diz Rodrigo Barata, sócio de Infraestrutura e Direito Público do Madrona Fialho Advogados.
“O Rio Grande do Sul será um divisor de águas. Os contratos de infraestrutura terão de ser repensados, reorganizados, como foram após a pandemia”, Claudio Frischtak, presidente da consultoria de negócios Inter.B
O tema vem mudando a forma de fazer concessões, mas a análise dos riscos climáticos precisa contemplar os desastres mais frequentes. Natália Marcassa, CEO da MoveInfra, que representa concessionárias de rodovias, ferrovias, aeroportos e portos, afirma que os contratos de infraestrutura não estão adaptados para a realidade atual. Ela defende que o primeiro passo é aprofundar o mapeamento de riscos, tanto pelo poder público quanto pelas gestoras de ativos.
— Um dos trabalhos é mapear de maneira mais criteriosa as regiões de risco e fazer projetos de infraestrutura mais resilientes— ela diz.
Quando necessários, os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro costumam levar anos em discussões nas agências reguladoras. A CCR Rio-SP, por exemplo, ainda aguarda o desfecho do pedido feito após os deslizamentos de abril de 2022 no litoral paulista que atingiram a rodovia Rio-Santos. Já a Concessionária Rio Teresópolis conseguiu reajustes no pedágio mais de uma vez devido a deslizamentos em sua via por chuvas fortes.
Reavaliação de rodovias
Rafael Vitale, diretor-geral da ANTT, diz que contratos mais recentes, desde 2018, já abarcam as mudanças climáticas, mas ainda há 14 concessões antigas de rodovias sob análise para a inclusão de eventuais aditivos relacionados ao tema.
— Os contratos celebrados neste ano já preveem que 1% do faturamento (das concessionárias) deve ser aplicado (em projetos) para resiliência climática. Em uma ocorrência de deslizamento ou alagamento, você usa os recursos para estabilização dos taludes ou alteamento de pontes — diz.
Em Porto Alegre, a cheia do Guaíba provocou a inusitada cena de um grande aeroporto submerso, incluindo parte de sua pista. O Salgado Filho só deve reabrir em agosto. Sem a receita das operações e danos em mobiliário e equipamentos, a Fraport Brasil, gestora do terminal, diz que “somente após um diagnóstico será possível avaliar eventual impacto no contrato de concessão”.
O Ministério de Portos e Aeroportos informou, em nota, que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) vai analisar o caso e que há previsão no contrato “de eventos classificados como força maior ou caso fortuito”. A pasta avalia se o governo custeará as reformas.
Para Henrique Silveira, sócio da área de infraestrutura do Mattos Filho, é possível ter contratos mais previsíveis, com mapeamentos geológico e climático mais precisos.
— É difícil o mercado precificar algo completamente inesperado. Talvez tenhamos de entender o que é previsível ou não dentro de uma localidade específica. Faz sentido alocar um pedaço do risco que exceda a média histórica de chuva, por exemplo, para o poder público — diz o advogado.
No caso da Sabesp, o contrato que vai basear a privatização prevê que a empresa deve desenvolver, em 180 dias, um plano de contingência para o risco de crise hídrica, evento que já deixou São Paulo com falta de água algumas vezes nos últimos anos. Segundo a Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do estado, escassez hídrica “fora do controle operacional habitual” seria um evento climático “tão extremo que mesmo o plano de contingência não seria suficiente para evitá-lo”.
A falta de previsão contratual sobre eventos extremos tende a afastar investidores de leilões como o do trecho entre Belo Horizonte e Governador Valadares da BR-381. Em novembro do ano passado, pela terceira vez, não houve propostas. Empresas alegam que a estrada é perigosa — é conhecida como a “rodovia da morte” — e o contrato não definia bem riscos geológicos do trecho nem dividia eventual ônus com o poder público. Neste mês, o edital foi republicado com mais clareza neste tema.
O desafio dos seguros
Outro debate que acelera no setor é sobre os seguros de infraestrutura. Segundo empresas e especialistas, há obras cujo risco é tão grande ou não corretamente mensurado que não há cobertura de seguros e resseguros disponível no país.
— Como a gente não tem um mapeamento detalhado, é difícil precificar o seguro. Sai mais caro do que deveria ou, em lugares onde a seguradora vê alto risco, ela nem faz a cobertura — diz Natália Marcassa, da MoveInfra.
A Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg) admite a lacuna. Diz que o país tem acesso ao mercado ressegurador local e global, mas falta precisão no mapeamento e avaliação dos riscos e da qualidade dessa infraestrutura.
— Pouquíssimas infraestruturas no Brasil hoje têm algum tipo de seguro — afirma Dyogo Oliveira, presidente da CNseg.
Claudio Frischtak, presidente da consultoria Inter.B, diz que os eventos climáticos frequentes entraram no radar dos agentes de infraestrutura e que o Rio Grande do Sul foi, ironicamente, um “divisor de águas” nesse debate. E lembra que é possível aprender com a experiência internacional.
— Na Costa Leste do Oceano Índico, por exemplo, há furacões, chuvas torrenciais, ventos fortíssimos. Há estudos que mostram quais são as infraestruturas mais afetadas — diz. — Os novos contratos são de melhor qualidade, mas o Rio Grande do Sul será um divisor de águas. Os contratos terão de ser novamente repensados, reorganizados, como foram depois da pandemia.