Com edição de DNA, brasileiros avançam no transplante de órgãos de porcos para humanos
Os cientistas conseguiram remover trechos de material genético que poderiam desencadear rejeições
Usando técnicas de edição de DNA, pesquisadores brasileiros deram passos importantes para viabilizar o transplante de órgãos de porcos para seres humanos.
Eles conseguiram remover trechos de material genético que poderiam desencadear rejeições ou causar doenças nos pacientes que receberem os tecidos de origem suína. Seu primeiro objetivo é realizar transplantes de rim, o que poderia diminuir significativamente a fila de transplantes e a dependência de constantes sessões de hemodiálise por parte dos doentes.
O trabalho está sendo coordenado pela geneticista Mayana Zatz e pelo médico Silvano Raia, da USP. "Na parte molecular, temos tido bastante sucesso", diz Zatz.
"Transplantes de rins suínos modificados dessa maneira para babuínos [que são primatas, como o ser humano] já mostraram que é possível uma sobrevida de longo prazo. Os macacos ficaram com os rins por dois anos e meio e foram sacrificados como parte do estudo, sem que isso tivesse relação com o transplante. O procedimento ainda não foi realizado com pacientes humanos em nenhum lugar do mundo, mas há equipes trabalhando para isso, e é um esforço que precisa ser realizado no Brasil também", argumenta ela.
Os suínos são considerados fontes promissoras para esse tipo de xenotransplante (transplante entre espécies diferentes) há tempos. Tanto o tamanho dos animais quanto sua anatomia são compatíveis com as necessidades de receptores humanos.
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Para que o transplante se torne viável, dois tipos de modificação genética são considerados necessários. O primeiro envolve a remoção de três trechos do DNA suíno que provocariam rejeição aguda nos pacientes. Além disso, é preciso extirpar ainda regiões do genoma conhecidas como Pervs (sigla inglesa de "retrovírus endógenos porcinos").
Em essência, estamos falando de vírus "fossilizados", que infectaram os ancestrais dos porcos de hoje e inseriram versões de seu material genético no genoma dos animais. É o que o vírus da Aids ainda faz hoje com as pessoas que infecta.
No organismo dos bichos, os Pervs são inócuos, mas há o risco de eles "ressuscitarem" e infectarem outra espécie que receber o órgão transplantado. Tanto no caso dos genes de rejeição quanto no dos Pervs, a equipe já dominou os métodos necessários para deletá-los, usando a técnica de edição de DNA conhecida como Crispr (pronuncia-se "crísper").
O próximo passo, conta Silvano Raia, será transferir o núcleo das células suínas modificadas para óvulos cujo núcleo foi retirado – na prática, um processo de clonagem – e implantar o embrião assim gerado em fêmeas. Os rins dos filhotes que nascerem a partir desse processo serão testados em sistemas de circulação extracorpórea, para demonstrar que são capazes de realizar corretamente a função filtradora do órgão.
Isso, no entanto, ainda não será suficiente para que a pesquisa chegue ao teste clínico, com pacientes. Para isso, os pesquisadores estão em busca de financiamento para construir a chamada "pig facility", uma instação em que os suínos seriam criados em condições livres de germes e, portanto, seguras para o transplante. A área já está disponível: um espaço de 1.100 m2 cedido pelo Ipen (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), na capital paulista. "Com a 'pig facility', poderíamos começar os testes com pacientes num intervalo de seis meses a um ano", diz Zatz.
Raia elenca os requisitos bioéticos para escolher os participantes: seriam pessoas cuja expectativa de vida ficaria maior com o transplante do que apenas com a continuidade da hemodiálise. Além disso, elas receberiam prioridade na fila de transplantes de órgãos humanos caso o procedimento não desse certo. "Seria possível fazer o xenotransplante sem retirar o rim ainda funcional do paciente, tornando-o reversível no caso de algum problema", explica ele.
Os pesquisadores chegaram até a consultar autoridades religiosas – católicas, judaicas e muçulmanas – em busca de seu beneplácito para o procedimento. "Em essência, é algo permitido por todos", diz Raia.