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CIÊNCIA

Como funcionam os implantes que levaram homem paraplégico a andar de forma inédita

Combinação de tecnologias permitiu que pensamentos do paciente fossem lidos e traduzidos em estímulos para a realização dos movimentos

Um paraplégico volta a andar graças à combinação de duas tecnologias Um paraplégico volta a andar graças à combinação de duas tecnologias  - Foto: Fabrice Coffrini / AFP

Pesquisadores descreveram em um estudo publicado ontem na revista científica Nature uma combinação nova de dois implantes que conseguiram devolver a um homem paralisado dos quadris para baixo o controle sobre a parte inferior do corpo novamente.

Gert-Jan Oskam morava na China, em 2011, quando sofreu um acidente de moto que levou à condição de paraplegia. — Há 12 anos venho tentando me recuperar — contou Gert-Jan em entrevista coletiva nesta semana. — Agora aprendi a andar normal, natural.

Cientistas da Suíça responsáveis pelo feito explicam que os dispositivos criam uma “ponte digital” entre o cérebro do homem e a sua medula espinhal, contornando as seções lesionadas.

A descoberta permitiu que Gert-Jan, agora com 40 anos, ficasse de pé, andasse e subisse uma rampa íngreme apenas com a ajuda de um andador. Mais de um ano após a inserção dos implantes, ele manteve essas habilidades e apresentou sinais de recuperação neurológica, andando com muletas ainda quando os aparelhos foram desligados.

— Capturamos (por meio dos implantes) os pensamentos de Gert-Jan e os traduzimos em uma estimulação da medula espinhal para restabelecer o movimento voluntário — explicou Grégoire Courtine, especialista em medula espinhal do Instituto Federal Suíço de Tecnologia, que ajudou a liderar a pesquisa , durante a coletiva.

Jocelyne Bloch, neurocientista da Universidade de Lausanne que colocou o implante em Gert-Jan, acrescentou: — Foi bastante ficção científica no começo para mim, mas tornou-se realidade hoje.

No novo estudo, a interface cérebro-medula espinhal, como os pesquisadores a chamaram, aproveitou um decodificador de pensamento de inteligência artificial para ler as intenções de Gert-Jan – detectáveis como sinais elétricos em seu cérebro – e combiná-las com os movimentos musculares.

A origem do movimento natural, do pensamento à intenção e à ação, foi preservada. A única adição, como Courtine descreveu, foi a “ponte digital” abrangendo as partes lesadas da coluna.

Como são feitos os implantes
Para alcançar esse resultado, os pesquisadores primeiro implantaram eletrodos no crânio e na coluna de Gert-Jan. A equipe então usou um programa de aprendizado de máquina para observar quais partes do cérebro se iluminavam enquanto ele tentava mover diferentes partes de seu corpo.

Esse decodificador de pensamento foi capaz de combinar a atividade de certos eletrodos com intenções específicas: uma configuração acendia sempre que ele tentava mover os tornozelos, outra quando ele tentava mover os quadris.

Em seguida, os pesquisadores usaram outro algoritmo para conectar o implante cerebral ao implante espinhal, que foi configurado para enviar sinais elétricos para diferentes partes de seu corpo, provocando o movimento.

O algoritmo foi capaz de levar em conta pequenas variações na direção e velocidade de cada contração e relaxamento muscular. E como os sinais entre o cérebro e a coluna eram enviados a cada 300 milissegundos, Gert-Jan podia ajustar rapidamente sua estratégia com base no que estava funcionando e no que não estava.

Na primeira sessão de tratamento, ele conseguiu torcer os músculos do quadril. Nos meses seguintes, os pesquisadores ajustaram a interface cérebro-medula espinhal para melhor se adequar a ações básicas como andar e ficar em pé.

Gert-Jan ganhou uma marcha de aparência um tanto saudável e conseguiu atravessar degraus e rampas com relativa facilidade. Além disso, após um ano de tratamento, ele começou a notar nítidas melhorias em seus movimentos sem o auxílio da interface cérebro-medula espinhal. Os pesquisadores documentaram essas melhorias nos testes de sustentação de peso, equilíbrio e caminhada.

Agora, Gert-Jan pode andar de forma limitada em sua casa, entrar e sair de um carro e parar em um bar para tomar uma bebida. Pela primeira vez, ele disse, sente que está no controle.

Os pesquisadores reconheceram limitações em seu trabalho. Intenções sutis no cérebro são difíceis de distinguir e, embora a atual interface cérebro-medula espinhal seja adequada para caminhar, o mesmo provavelmente não pode ser dito para restaurar o movimento da parte superior do corpo. O tratamento também é invasivo, exigindo várias cirurgias e horas de fisioterapia. O sistema atual não corrige todas as paralisias da medula espinhal.

Mas a equipe estava esperançosa de que novos avanços tornariam o tratamento mais acessível e sistematicamente eficaz. “Este é o nosso verdadeiro objetivo”, disse Courtine, “tornar esta tecnologia disponível em todo o mundo para todos os pacientes que dela precisam”.

Avanços tecnológicos que levaram aos implantes
Houve uma série de avanços tecnológicos no tratamento da lesão medular nas últimas décadas. Em 2016, um grupo de cientistas liderado por Courtine conseguiu restaurar a capacidade de andar em macacos paralisados, e outro ajudou um homem a recuperar o controle de sua mão.

Em 2018, um grupo diferente de cientistas, também liderado por Courtine, desenvolveu uma maneira de estimular o cérebro com geradores de pulsos elétricos, permitindo que pessoas parcialmente paralisadas voltassem a caminhar e a andar de bicicleta. No ano passado, procedimentos de estimulação cerebral mais avançados permitiram que indivíduos paralisados nadassem, caminhassem e andassem de bicicleta em um único dia de tratamento.

Gert-Jan havia passado por procedimentos de estimulação em anos anteriores e até recuperou alguma capacidade de andar, mas, eventualmente, sua melhora estagnou. Na coletiva, ele disse que essas tecnologias de estimulação o deixaram com a sensação de que havia algo estranho na locomoção, uma distância estranha entre sua mente e seu corpo.

A nova interface com a combinação dos dois implantes e o decodificador de pensamentos mudou isso. — A estimulação antes estava me controlando e agora eu que estou controlando a estimulação — disse. Andrew Jackson, neurocientista da Universidade de Newcastle, que não participou do estudo, avalia:

— Isso levanta questões interessantes sobre autonomia e a origem dos comandos. Você continua confundindo a fronteira filosófica entre o que é o cérebro e o que é a tecnologia.

Jackson acrescentou que os cientistas da área vinham teorizando sobre como conectar o cérebro aos estimuladores da medula espinhal há décadas, mas que isso representava a primeira vez que eles alcançavam tanto sucesso em um paciente humano: — É fácil dizer; é muito mais difícil de fazer.

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