Como Putin transformou o boicote do Ocidente em um negócio lucrativo para a elite russa
Presidente da Rússia definiu termos de saída para beneficiar governo, suas elites e o esforço de guerra
Pouco depois das tropas russas terem invadido o seu país, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, fez um apelo às empresas ocidentais.
— Deixem a Rússia — disse ele. — Certifiquem-se de que os russos não recebam um único centavo.
Centenas de empresas atenderam ao chamado. Políticos e ativistas previram que isso ajudaria a estrangular a economia russa e a minar o esforço de guerra do Kremlin. O presidente russo, Vladimir Putin, tinha outros planos.
Putin transformou as saídas de grandes empresas ocidentais em uma sorte inesperada para a elite leal da Rússia e para o próprio Estado. Ele forçou as empresas que desejavam vender suas operações a fazê-lo a preço de liquidação. Ele limitou as vendas a compradores ungidos por Moscou. Às vezes, ele confiscou empresas de imediato.
Uma investigação do New York Times descobriu como Putin transformou um infortúnio esperado em um esquema de enriquecimento. As empresas ocidentais que anunciaram saídas declararam mais de US$ 103 bilhões (R$ 508,8 bilhões) em perdas desde o início da guerra, de acordo com uma análise de relatórios financeiros do Times. Putin pressionou as empresas para obterem o máximo possível dessa riqueza, ditando os termos da sua saída.
Ele também sujeitou essas saídas a impostos cada vez maiores, gerando pelo menos U$1,25 bilhão (R$ 6,18 bilhões) no ano passado para o fundo de guerra da Rússia.
Nenhum negócio particular está a salvo. A cervejaria holandesa Heineken, por exemplo, encontrou um comprador e estabeleceu um preço. Mas o governo russo rejeitou unilateralmente o acordo, disseram pessoas próximas das negociações, e colocou as participações russas da empresa nas mãos de uma titã das embalagens de aerossóis casada com um antigo senador russo.
Ao todo, Putin supervisionou uma das maiores transações de riqueza dentro da Rússia desde a queda da União Soviética. Enormes áreas industriais – elevadores, pneus, revestimentos industriais e muito mais – estão agora nas mãos de intervenientes russos cada vez mais dominantes.
Em alguns casos, o próprio Estado russo é o beneficiário. As empresas estatais adquiriram os ativos de gigantes empresariais como a Ikea e a Toyota. Em muitos casos, Putin assina pessoalmente as vendas.
— São bons negócios para nós, com certeza — disse Anton Pinsky, um proeminente dono de restaurante que se juntou a um rapper pró-Putin e a associados de um poderoso senador para assumir o controle da Starbucks. Em uma entrevista em Moscou, ele minimizou a importância do seu próprio acordo, mas foi claro sobre o efeito das saídas ocidentais.
— Compramos barato. Obrigado — disse.
Hoje, na Rússia, um mundo de consumo robusto continua, ajudando Putin a manter um sentido de normalidade, apesar de uma guerra que se revelou mais longa, mais mortal e mais dispendiosa do que ele previu.
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A maioria das empresas estrangeiras permanece na Rússia, não dispostas a perder os bilhões que investiram lá ao longo de décadas. Outras empresas foram vendidas e agora têm uma sensação de espelho. Krispy Kreme agora é Krunchy Dream. A Starbucks renasceu como Stars Coffee.
Estas empresas podem comprar matérias-primas internamente ou importá-las de países amigos. E os clientes ainda podem comprar facilmente produtos que supostamente foram retirados das prateleiras.
Os contra-ataques econômicos de Putin ajudaram a fortalecer o apoio entre as elites que lucram com a guerra e a atenuar os efeitos do isolamento ocidental. Embora a Ucrânia esteja preocupada com imperativos de curto prazo, como reforçar o apoio internacional, a relativa resiliência da economia russa permitiu a Putin jogar um jogo longo.
Documentos, demonstrações financeiras e entrevistas anteriormente não divulgadas com dezenas de negociadores na Rússia e em toda a Europa mostram que Moscou agora microgerência praticamente todas as saídas. As empresas devem navegar em um sistema opaco para obter aprovação para vender.
A onda de saída de empresas doeu. Enviou um sinal global de que a Rússia é um pária empresarial. A economia está tensa e em risco de sobreaquecimento. A forma como Putin lidou com as saídas ocidentais apenas reforçou a imagem da Rússia como um lugar perigoso para fazer negócios. Até mesmo alguns altos responsáveis russos admitem que a diminuição da concorrência e do investimento estrangeiro prejudicarão os cidadãos russos e a economia a longo prazo.
O Kremlin diz preferir que as empresas permaneçam na Rússia. Mas Putin zomba da ideia de que sair irá doer.
— Eles achavam que tudo iria desabar aqui? Bem, nada disso aconteceu — disse ele este mês. — As empresas russas assumiram o controle e seguiram em frente.
Pairando sobre o processo de saída das empresas ocidentais está a ameaça de intimidação e uso da força.
No verão passado (no hemisfério norte), Putin confiscou a filial russa da cervejaria dinamarquesa Carlsberg, juntamente com cerca de US$ 500 milhões (R$ 2,47 bilhões) em espécie, e colocou-os sob o controle temporário de um de seus amigos.
Pelo menos quatro outras empresas perderam igualmente o controle das suas operações este ano devido a apreensões estatais efetivas.
Hoje, Putin está à frente de um complicado processo de retirada que funciona em benefício da Rússia. Mas tudo começou nos primeiros dias da guerra com o objetivo urgente de simplesmente manter viva a economia russa.
Bloqueando as saídas
Falando na Casa Branca duas semanas após a invasão de fevereiro de 2022, o presidente dos EUA, Joe Biden, vangloriou-se de que o Ocidente estava a esmagar a economia russa.
— A lista de empresas e corporações internacionais que deixam a Rússia cresce a cada dia — disse ele.
As coisas pareciam sombrias para Putin. A bolsa de valores de Moscou foi fechada e o rublo caiu. Se a Rússia perdesse todos os empregos, produção e dinheiro das empresas ocidentais, os efeitos seriam devastadores.
Mas Putin estava a preparar a sua resposta financeira. Ele restringiu a movimentação de dinheiro para o exterior e exigiu que empresas de “nações hostis” obtivessem aprovação antes de venderem os seus negócios.
Putin pisava no freio no momento em que os executivos ocidentais enfrentavam pressão para acelerar. Nos EUA, talvez não houvesse figura mais vocal do que Jeffrey Sonnenfeld, professor de administração da Universidade de Yale. Ele apareceu em programas de notícias a cabo criticando as empresas que permaneceram na Rússia.
Sonnenfeld lembrou que foram os boicotes corporativos – mais do que as sanções – que ajudaram a abolir o apartheid na África do Sul. Ele transformou seu escritório em uma espécie de sala de guerra, com uma equipe de Yale avaliando as empresas por seus esforços para romper os laços com a Rússia.
A questão de quem ficaria com essas empresas era pouco preocupante.
— Se Putin acha que pode fazer melhor em meio à fritura, deixe-o fazer isso — disse ele em entrevista. — Nós realmente não nos importamos. O importante é não ter o aval de uma marca global de renome.
A lista de Sonnenfeld e outras semelhantes aumentaram a pressão dos acionistas, dos ativistas ucranianos e dos consumidores comuns.
Heineken por cerca de um dólar
Em 2023, a paisagem tornou-se irreconhecível. O Kremlin mudava constantemente as regras e parecia estar sempre a exigir mais. Empresas como a Unilever anunciaram que prefeririam permanecer na Rússia a ver os seus ativos acabarem nas mãos do governo.
Neste contexto, os executivos da Heineken e da Carlsberg ainda estavam negociando com potenciais compradores neste ano, quando Putin atribuiu a si mesmo poderes ainda maiores.
O governo russo, decretou ele em abril, poderia confiscar ativos estrangeiros e colocá-los sob a supervisão temporária de quem quisesse. As empresas agora corriam o risco de serem apreendidas imediatamente.
A Heineken chegou a um acordo naquele mês, e o comprador, um empresário cazaque, solicitou a aprovação do governo. Os executivos da Carlsberg seguiram o exemplo, planejando vender para a Arnest, uma fabricante russa de aerossóis que recentemente adquiriu o altamente lucrativo negócio de embalagens de bebidas da norte-americana Ball Corp.
Ambas as cervejarias estavam confiantes de que, mais de um ano depois de anunciarem planos de deixar a Rússia, finalmente o fariam.
Em julho, Putin surpreendeu os executivos da Carlsberg ao confiscar a empresa e colocá-la nas mãos do seu associado de longa data e amigo do judô, Taimuraz Bolloev.
Carlsberg era um alvo atraente. A empresa controlava a icônica marca russa de cerveja Baltika e avaliou recentemente a sua operação russa em cerca de US$ 3 bilhões (R$ 14,8 bilhões). A empresa tinha US$ 500 milhões (R$ 2,47 bilhões) em dinheiro.
Em outra reviravolta, as autoridades russas também rejeitaram o acordo da Heineken. De acordo com pessoas próximas das negociações, as autoridades direcionaram o negócio para Arnest – um consolo, talvez, por ter perdido a muito mais lucrativa Carlsberg.
O acordo foi fechado por um único euro e a promessa de pagar US$ 100 milhões (R$ 494 milhões) em dívidas.
Para os executivos da Carlsberg, a saga estava longe de terminar. As autoridades russas prenderam dois funcionários da empresa e invadiram as suas casas. Neste mês, informaram os meios de comunicação russos, Bolloev pediu às autoridades que nacionalizassem a empresa.
Dmitry Medvedev, ex-presidente russo e atual vice-presidente do conselho de segurança do país, não expressou qualquer simpatia pelas empresas que tentam transferir dinheiro para fora do país.
Ele zombou da Carlsberg, agradecendo-lhes por aumentarem o orçamento russo.
“Um orçamento forte significa ajuda para a frente”, escreveu ele no mês passado. “A este respeito, os dinamarqueses insensatos também contribuem para as armas russas modernas.”