ENTREVISTA

Como se libertar de um narcisista: psicóloga garante que pessoas com a condição "nunca vão mudar"

Autora de livro ensina a conseguir deixar uma pessoa assim ou, pelo menos, conviver sem que ela te afete tanto

Como se libertar de um narcisista: psicóloga garante que pessoas com a condição "nunca vão mudar"Como se libertar de um narcisista: psicóloga garante que pessoas com a condição "nunca vão mudar" - Foto: FreePik

Na mitologia grega, Narciso era belíssimo, mas também arrogante e orgulhoso. Desprezava todos os demais, inclusive a bela ninfa Eco, que o amava, mas nunca foi correspondida. Ele acabou se apaixonando por sua própria imagem, refletida em um lago. Na beira d’água, definhou até morrer.

Não à toa, o moço deu nome ao transtorno da personalidade narcisista (TPN), uma condição psiquiátrica definida no DSM-5 (o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais).

Talvez sejamos todos, em algum momento, vaidosos, arrogantes ou egoístas, mas os narcisistas têm essas características incorporadas à sua personalidade e, assim, como a Eco, deixam marcas dolorosas em quem convive com eles.

 



Para essas pessoas, a psicóloga britânica Sarah Davies, especializada em tratamento de trauma e com experiência na área de abuso narcisista, escreveu o livro “Como se libertar de um narcisista” (editora Sextante). Veja a seguir os melhores trechos da entrevista.

A psicóloga e escritora Sarah Davis — Foto: Divulgação

Há alguns anos, no Brasil, não usávamos o termo ‘narcisista’. Mas de um tempo para cá, ficou comum.
Posso dizer exatamente o mesmo. Há dez anos na Inglaterra, não era algo que se falava. Mudou muito em dez anos, especialmente nos últimos cinco. Quando comecei a trabalhar nessa área, por volta 2013, não se ouvia falar sobre abuso narcisista. Lembro-me de pesquisar no Google sobre isso e meia dúzia de páginas apareceram.

Agora, existem milhões e milhões. Naquela época, não havia informação sobre o assunto. E então, ao longo dos anos, começou a mudar, e há informações realmente boas. Mas nos últimos quatro ou cinco anos, é como se estivesse em todas as mídias sociais. Todo mundo está falando sobre isso. E o significado clínico está se perdendo.

Hoje qualquer pessoa com uma atitude egoísta é chamada de narcisista.
É um ponto importante. É preciso ficar claro se é narcisismo, se é o transtorno de personalidade narcisista. Ao longo dos anos, muitas vezes o significado clínico se perde. Às vezes você está sofrendo, mas não é depressão. Ou, a pessoa perdeu as chaves e diz que tem TDAH.

Talvez tenha. Talvez não. Mas quando se trata de narcisismo, pode ser um pouco problemático, porque passar por abuso narcisista é bastante traumático. Todos nós podemos ser um pouco egoístas às vezes. Ou muito egoístas. Um pouco vaidosos ou algo assim. Não significa que tenha o perfil de um narcisista. É por isso que eu falo sobre o critério de diagnóstico, que é ter pelo menos cinco das principais características.

Quais são elas?
Forte percepção de grandiosidade, necessidade patológica de admiração e atenção, egoísmo, arrogância, ansiedade, frequente depreciação dos outros, crença de que são “especiais”, convicção de merecer privilégios, falta de empatia, não assumir responsabilidade pelos próprios erros, vícios, medo de intimidade e agressividade. Há um perfil quando há cinco ou seis desses traços a longo prazo e de forma consistente, independentemente de com quem esteja interagindo.

Sabemos quantas pessoas na sociedade são narcisistas?
Pesquisas estimam o transtorno de personalidade narcisística no mundo ocidental entre 5% e 15% da população. Mas acho que é muito difícil obter um número realmente claro porque geralmente é tirado de pessoas que vão à terapia ou ambientes clínicos e pessoas narcisistas são as pessoas menos propensas a irem à terapia. Se elas fazem, normalmente é só para manipular.

No seu livro, a sensação é que um narcisista nunca vai mudar. É verdade?
Sim. Me perguntam muito se um narcisista vai mudar. E a resposta é não, ele não vai. São necessárias algumas coisas para alguém mudar: primeiro, é preciso ter uma percepção genuína sobre si mesmo.

Os narcisistas não têm. E a outra coisa é a motivação para mudar, que vem, geralmente, de quando você se sente mal. Os narcisistas não sentem isso de verdade.

Eles não têm empatia, então não sentem arrependimento ou remorso. Então, nunca vão realmente assumir essa responsabilidade pessoal. Vi pessoas desperdiçando anos e décadas de suas vidas, pela esperança e fantasia de que alguém mudará quando, na verdade, os ingredientes para a mudança simplesmente não estão lá e nunca estarão.

Então, os narcisistas mudarão algum dia? A resposta curta é não. Mas a pergunta mais importante é: por que alguém estaria esperando por isso? Por que não estar com alguém que é realmente legal do jeito que é, para te tratar bem agora?

O narcisista sabe que é um narcisista?
Geralmente, eles não têm muita consciência ou autopercepção. Esta é uma das razões pelas quais torna tão difícil tratar o narcisismo. Então não é algo sobre o que estariam refletindo ou se preocupando. Em vez disso, são muito mais propensos a serem psicologicamente fixados em culpar e projetar, acusando os outros de suas próprias falhas, e até mesmo acusando os outros de serem narcisistas.

Quem convive com o narcisista é muito afetado?
As pessoas narcisistas vão convencê-lo de que o problema é como você, você que é emocional, muito sensível. Isso é tudo abuso, na verdade. A pessoa provavelmente está tendo uma reação apropriada a algo que está acontecendo, mas a é sempre sua minha culpa.

Como é a dinâmica com pais narcisistas?
Nada nunca é o suficiente. Mesmo que você esteja bonita não é o suficiente. Mesmo que você tenha um bom emprego não é o suficiente. Nunca é. O benefício disso é que muitas vezes alimenta ambição e sucessos. Mas mesmo com conquistas, o filho segue sentindo que precisa de mais. É por isso que tantas pessoas que foram vítimas de abuso narcisista acabam com algumas formas viciantes de ser, e pode não ser necessariamente como álcool, mas como vício em trabalho ou quanto consegue dinheiro, sentir que precisa de mais. Se compra uma casa, precisa de uma casa maior ou um carro melhor. Eu vi muitas pessoas com esse tipo de mentalidade viciante porque nada nunca é o suficiente. E, novamente, uma das coisas que é realmente útil é ter compaixão por si mesmo e ouvir aquela líder de torcida interior para dizer: “sabe de uma coisa? Estou indo muito bem, na verdade”.

Muitas vezes, pessoas que têm pais narcisistas acabam se relacionando, igualmente, com um narcisista. E ela ainda pode se culpar por não ter sido capaz de identificar ou evitar isso de novo.
Sabe o que é realmente, realmente importante? As pessoas precisam ser compassivas consigo mesmas sobre isso. Porque o que você acabou de descrever é exatamente o que acontece. Eu tenho um segundo livro, que será lançado no Reino Unido em setembro, e se chama Raised by Narcissists (Criado por Narcisistas, em tradução livre), que é sobre lidar com pais difíceis, tóxicos e narcisistas. E eu não escrevi isso por acidente. A razão pela qual escrevi é porque 99% das pessoas com quem trabalhei que se encontraram em um relacionamento com um narcisista, na verdade, se olharem profundamente, descobrirão que tiveram um pai ou mãe que era um pouco assim. Os relacionamentos que temos enquanto crescemos moldam o tipo de relacionamento em que nos encontramos. Aqui nós dizemos assim "há conforto na familiaridade”. É uma espécie de ditado sobre algo que talvez não seja tão bom ou saudável, mas parece certo porque é familiar. O filho do narcisista tem pensamentos recorrentes de que é “minha culpa”, “eu não sou bom o suficiente”, “nada que eu faça é o suficiente”. Nós sempre carregamos esse tipo de autocrítica e culpa também. E é muito importante combater isso com autocompaixão.

Fora do relacionamento, o narcisista, muitas vezes, tem uma imagem bastante positiva.
Eles se retratam como o melhor parceiro do mundo para quem está de fora. E isso torna ainda mais difícil porque é um pouco gaslighting. Você pensa, "ele foi realmente horrível comigo, mas todo mundo está dizendo o quão adorável ele é”. É quando se torna um abuso psicológico, porque você começa a duvidar de si mesmo e do seu julgamento. Eu convido as pessoas a fazerem um inventário, escrever não sobre como era quando vocês se conheceram, mas como é agora, porque isso ajuda você a ter uma perspectiva fundamentada que muitas vezes pode ser perdida quando você está no meio de um relacionamento com um narcisista porque eles vão desafiar a verdade. Isso pode te aterrar na realidade. Coloque no papel. Como ele acabou de falar comigo? Como ele me tratou? Como me sinto?

Nem sempre as pessoas podem, simplesmente, cortar o convívio. Como fazer, então?
Muitas pessoas ficam angustiadas ouvindo esse conselho de “corte o contato”. É uma solução rápida e fácil, mas nem sempre é possível. Então é aí que o trabalho real acontece. E, na minha opinião, é aqui que você pode chegar à recuperação real: quando você consegue lidar com pessoas narcisistas na sua vida sem que elas o afetem como poderiam ter feito no passado. Não é fácil, mas pode ser feito. E acho que uma das primeiras coisas que ajudam é conseguir espaço físico. É uma solução quando se trata de um pai, mãe, marido ou chefe. Isso ajuda a ganhar espaço mental para pensar e e então dar os próximos passos.

Quais são?
O que acontece com um narcisista é que ele ocupa muito espaço no relacionamento. Então é tudo sobre suas necessidades, seus sentimentos, e eles tendem a se sentir atraídos por pessoas que aceitam ocupar só um pedacinho de espaço. O tipo que diz “ah, tanto faz. Eu sou tranquilo, não me importo.” Basicamente, o que você precisa fazer é começar a reivindicar mais espaço. Para que isso aconteça, primeiro você precisa saber quais são seus desejos, necessidades e valores. A partir daí, estabelecer consequências. E, como qualquer mãe sabe, tem que ser consistente nas consequências. É o mesmo para lidar com narcisistas. Emocionalmente, eles são como uma criança de 4, 5 anos.

Como se libertar?
Tudo se baseia em definir seus valores, colocar limites e ser capaz de se levantar e comunicá-los. Junto com isso, você precisa construir sua autoestima, autoconfiança e autocompaixão. Acho que esse é o ponto principal. Você não pode mudar um narcisista. Só pode mudar como lida com ele. Muitas vezes as pessoas ficam presas em ver o que o narcisista está fazendo. E uma das perguntas que sempre faço aos meus pacientes é: o que você está fazendo? A mudança acontece dentro de você. É aí que a recuperação realmente começa.

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