Contexto de crises acirra eleição presidencial nos EUA e pode afetar o Brasil
Votação se encerra na próxima terça-feira (3), definindo embate entre Donald Trump e Joe Biden. Resultado terá repercussões na geopolítica mundial.
Crise. É difícil que haja, entre os termos que mais aparecem nas análises acadêmicas e nas matérias jornalísticas lançadas nos últimos tempos, uma palavra melhor para resumir o ano de 2020 e a década que começa, a terceira do século 21. Na verdade, para sermos mais corretos, o que o mundo vive hoje é um encontro de crises: política, econômica, social, ambiental e sanitária.
Agravadas por uma pandemia que, em dez meses, matou mais de 1,1 milhão de pessoas, essas crises incluem mudanças nas relações de trabalho, protestos por garantia de direitos civis, investimentos na proteção dos ecossistemas, polarizações ideológicas e um processo de automatização dos meios de produção e consumo, por meio de uma acelerada transição do modo de vida “analógico” para o “digital”.
É neste contexto que se encerra, na próxima terça-feira (3), a corrida eleitoral para a presidência dos Estados Unidos da América (EUA), país que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, assume o posto de superpotência militar e econômica do planeta - posição antes disputada apenas pela União Soviética durante a Guerra Fria.
Hoje, outro gigante do hemisfério oriental ameaça a hegemonia do Tio Sam, acirrando uma forte disputa comercial e tecnológica. A China, que promete se tornar a maior economia do mundo até o fim dos anos 2030, tem liderado os avanços na criação do 5G e ainda destacou-se como uma das nações que melhor souberam gerenciar a crise do coronavírus. Enquanto isso, o rival americano, que acumula os maiores índices de infecções e mortes por Covid-19, enfrenta um cenário de polarização política e conflitos sociais.
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Embora marcada para 3 de novembro, a votação já começou. Por lá, o voto antecipado, por correio, é permitido e, até a noite da última quinta-feira, foram computados mais de 80 milhões. Um recorde na história do país, ultrapassando a metade do total de votos registrados na eleição de 2016 - o voto nos Estados Unidos é facultativo.
A mudança de conduta se deve à pandemia do novo coronavírus, que faz as pessoas evitarem o comparecimento às cabines das urnas ou das cédulas de papel.
No pleito de 2020, os líderes em disputa apresentam-se ao eleitor sob perfis bastante diferentes entre si (veja no primeiro infográfico), e a decisão que sairá do Colégio Eleitoral pode alterar a geopolítica do mundo, com reflexos em toda a comunidade internacional, incluindo o Brasil.
O atual presidente, o republicano Donald Trump, mais ligado à direita ultraconservadora, está, segundo as pesquisas, numa situação difícil, nunca antes enfrentada por um candidato à reeleição. Pelas projeções, o adversário do Partido Democrata, Joe Biden, tido como político moderado de centro, se encontra a quase dez pontos percentuais à frente do mandatário, com 99% das chances de ganhar no voto popular e 95%, no Colégio Eleitoral.
Porém, considerando as peculiaridades do sistema eleitoral do país e as circunstâncias causadas pela pandemia, Trump pode sair vencedor.
Um dos principais fatores a que se deve prestar atenção será o comportamento dos eleitores dos estados-chave, aqueles com maior peso na eleição e que pendem ora para os democratas, ora para os republicanos (veja no segundo infográfico). Este ano, entre os territórios considerados decisivos, estão os do meio-oeste, como Michigan e Minnesota, onde tiveram início os protestos antirracistas desencadeados pela morte de George Floyd, além da Flórida e da Pensilvânia.
Desses locais, Hillary Clinton ganhou apenas em Minnesota, o que contribuiu para a derrota da democrata no Colégio Eleitoral, apesar de ter recebido 2,8 milhões de votos a mais nacionalmente.
Coordenador do curso de Ciência Política da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), o professor Thales Castro cita ainda os estados de Ohio, Virgínia, Iowa e Carolina do Sul, que também costumam oscilar.
“Para ser presidente, é necessário ter 240 votos no Colégio Eleitoral, e esses votos são proporcionais ao peso demográfico de cada um dos 50 estados da federação. Um candidato pode ter o maior número de votos nominais, mas perder porque não soube fazer uma pulverização geográfica daqueles estados maiores ou menores”, explica.
“Biden tem uma leve vantagem nas pesquisas [nesses locais], mas essas pesquisas têm problemas metodológicos. Em 2016, tivemos uma maioria envergonhada e silenciosa, aquele grupo de pessoas que não manifestavam intenção de voto em Trump, mas foram às urnas e sagraram o nome dele”.
Outro ponto de incerteza é o risco da judicialização. Incentivado pela campanha democrata, o voto pelo correio é contestado por Donald Trump, que alega que isso aumenta a ocorrência de fraudes. O receio é que, caso perca, o republicano questione o resultado na Justiça.
Assim, o pleito deverá ser decidido pela Suprema Corte, que, desde a nomeação da juíza Amy Coney Barrett após a morte de Ruth Bader Ginsburg, é composta por seis magistrados de perfil mais conservador e três progressistas.
A eleição e a pandemia
A pressão sobre o voto a distância é mais um dos efeitos provocados pela pandemia do Sars-Cov-2, nome científico do novo coronavírus, na eleição presidencial, especialmente no desempenho do candidato do Partido Republicano.
Os Estados Unidos são, hoje, o país mais atingido pela crise sanitária, com quase 9 milhões de casos confirmados e mais de 228 mil mortes desde o primeiro registro de Covid-19 por lá, em janeiro.
Após um período de queda, os números voltaram a subir nas últimas semanas. Em plena campanha, o próprio Donald Trump contraiu a doença, pouco depois de anunciar a indicação de Amy Barrett para a Suprema Corte, no início de outubro.
O episódio ratificou a percepção negativa da população em relação à performance do presidente no combate à infecção. De acordo com pesquisa realizada pela Reuters/Ipsos, 65% dos estadunidenses acreditam que Trump não teria se infectado se tivesse sido mais cuidadoso. A avaliação é registrada a partir de um comportamento errático do atual mandatário diante da pandemia.
Ao longo da corrida eleitoral, a adoção das medidas preventivas foi politizada e minimizada pelo candidato à reeleição e pelos apoiadores, que, em diversas ocasiões, não usaram máscaras e descumpriram as normas de distanciamento social.
Para o professor Marcos Guedes, do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a postura do presidente norte-americano perante a Covid-19 fez os EUA perderem o protagonismo nas organizações internacionais.
“Para recuperar esse protagonismo, a primeira iniciativa seria de liderança mundial no combate à Covid, baseada em elementos como compra e distribuição de vacinas e medicamentos para todo o planeta e cooperação nas áreas científica e médica. Acho que isso é fundamental não só no sentido humanista, mas no sentido de recuperar a confiança nos atores da economia global”, avalia. “Essa é uma iniciativa que só o presidente dos Estados Unidos pode fazer porque tem instrumentos para isso”.
Nesse aspecto, na avaliação do cientista político, as condutas dos dois candidatos têm sido bastante divergentes.
“Se o vencedor for Biden, em função dos compromissos do Partido Democrata, é bem possível que ele tome essa iniciativa. Mas, se o presidente eleito for Donald Trump, ele tem ainda possibilidade de fazer um mea-culpa, mas, olhando o histórico dele, toda a política foi baseada em fazer um bloco político-econômico conservador liderado pelos Estados Unidos, com participação de outros países, ter uma diplomacia muito mais voltada para interesses imediatos e desconsiderar a dimensão da crise da Covid”, argumenta.
“As declarações do atual presidente são as mais estranhas possíveis: que, no verão, o vírus ia evaporar ou que o doente devia tomar água sanitária. Mesmo que fosse brincadeira, é algo gravíssimo”.
Resultado também pode afetar o Brasil
Além do engajamento internacional contra a Covid-19, as relações dos Estados Unidos com o Brasil podem ser afetadas, dependendo do resultado do pleito. O alinhamento diplomático do presidente Jair Bolsonaro com o governo Trump - que incluiu, até, manifestações públicas em apoio à candidatura republicana - lança incertezas sobre o futuro das tratativas entre os dois países caso Joe Biden vença a disputa.
Outro ponto-chave nesse panorama será a recuperação da economia estadunidense nos próximos anos, em frente ao impacto do coronavírus.
Até o início deste ano, a atividade econômica na nação da América do Norte seguia em crescimento. O cenário mudou drasticamente na pandemia. Em julho, o Departamento de Comércio norte-americano anunciou uma retração de 32,9% no Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre de 2020, a maior queda desde o início da série histórica, em 1947.
“Quando Trump foi eleito em 2016, ele herdou uma economia que estava indo muito bem. Obama tinha feito uma série de ajustes após a crise de 2008 e entregou uma economia crescente, a taxa de desemprego em baixa e preços estáveis. Trump adotou a política econômica dele, reduziu os impostos e aumentou os gastos em algumas áreas, e a economia continuou bem. O que causou o tropeço foi a pandemia. Nos EUA como no mundo inteiro, foi como se a economia caísse num precipício”, observa o economista Jorge Jatobá.
“O problema é que Trump minimizou a pandemia, como o nosso presidente aqui. E ele está pagando um preço muito alto com isso”.
Para o cientista político Thales Castro, a recuperação econômica será o grande desafio para o presidente eleito. “A restauração dos empregos e a retomada da confiança interna e externa, diante de uma nova ‘guerra quente’, como eu chamo o ânimo de rivalidade entre EUA e China que cresce de forma muito animalesca”, diz.
Quanto ao Brasil, na avaliação de Castro, uma vitória de Biden poderá ampliar o isolamento de Bolsonaro na comunidade internacional. “Há um alinhamento político, doutrinário e ideológico da direita nacionalista que está presente em Bolsonaro e em Trump. Caso Biden seja eleito, haverá um distanciamento no relacionamento entre Washington e Brasília, e isso vai acarretar um isolamento em cadeia”, afirma.
5G e Amazônia
Internamente marcado por medidas anti-imigração e embates com movimentos de grupos minoritários, o governo Trump mantém, na política externa, uma dura guerra comercial com a China.
No centro do confronto, está, ao lado da corrida pela produção de uma vacina contra a Covid-19, a concorrência pela implantação do 5G, novo padrão tecnológico de telefonia móvel que promete uma revolução na conectividade em banda larga no mundo.
Os EUA pressionam diversos países, inclusive o Brasil, para não permitirem que empresas chinesas, como a Huawei, instalem a tecnologia nos seus territórios.
Mas é justamente a companhia asiática que está mais perto de desenvolver a próxima geração de rede de internet móvel. A justificativa é que o sistema chinês de telecomunicações possa ser usado como instrumento de espionagem.
“Na verdade, isso é uma guerra comercial com argumento político. No fundo, está em jogo a supremacia tecnológica e isso é um grande negócio. O Brasil é importante porque é muito significativo do ponto de vista do mercado de tecnologia digital. O problema é que o governo brasileiro faz acordos bilaterais e não sabe negociar. Se for interesse do Brasil ter o 5G chinês, deve implantar a chinesa. Se for a americana, idem. Mas isso deve ser negociado e não conseguido com concessões prévias. E a postura do Itamaraty tem sido de concessão prévia com alinhamento automático”, avalia Jatobá.
Entretanto, uma vitória democrata pode quebrar esse alinhamento automático, se não no 5G, que envolve a comunista China, pelo menos nos investimentos para a preservação ambiental. O aumento nos níveis de desmatamento na Amazônia e no Pantanal nestes primeiros dois anos de governo Bolsonaro é alvo de críticas internacionais, em especial da União Europeia.
Ao contrário de Trump, Biden já afirmou que pressionará o Brasil sobre a questão. “Vai ter uma tensão que vai se manifestar na área comercial. Há grandes empresas americanas atuando aqui, então Biden não terá uma política radical. Mas vai usar isso como instrumento de pressão”, analisa Jorge Jatobá.