Cortes de financiamento externo põem em xeque estratégia de guerra da Ucrânia
Congresso dos EUA barrou novo pacote de ajuda a Kiev
"A História julgará duramente aqueles que viraram as costas à causa da liberdade. Não podemos deixar Putin vencer", afirmou um enfático presidente Joe Biden na Casa Branca, pouco antes de o Senado dos EUA votar na quarta-feira um pacote de US$ 111 bilhões (R$ 534 bilhões) à Ucrânia e a Israel.
As palavras não surtiram efeito, e a proposta foi derrotada, apesar da maioria teórica dos governistas — o texto trazia, além de US$ 14 bilhões (R$ 68,63 bilhões) aos israelenses, envolvidos na guerra contra o Hamas, cerca de US$ 46 bilhões (R$ 225,48 bilhões) para Kiev, no momento em que o conflito contra os russos está em um impasse.
— Isso não pode esperar. Francamente, acho impressionante termos chegado a esse ponto em primeiro lugar — completou Biden em seu apelo.
Desde o começo da guerra, em fevereiro do ano passado, a ajuda militar dos EUA soma US$ 67 bilhões (R$ 328,42 bilhões), valor que superaria os US$ 110 bilhões (R$ 539,68 bilhões) se o Senado tivesse dado aval ao novo plano. Dias antes, a Casa Branca havia declarado que o fundo destinado ao envio de armas para os ucranianos poderia ficar sem dinheiro até o fim do ano sem um novo aporte.
Noves fora as razões para a derrota do plano — que incluem temas eleitorais, disputas internas entre os republicanos e questões sobre a guerra em Gaza —, a decisão pode afetar diretamente a capacidade ucraniana de reagir a ofensivas russas. Em uma delas, em Avdiivka, na região de Donetsk, as posições de Kiev estão sob ataques diários há meses. O elevado número de mortos já rendeu à batalha o apelido de "moedor de carne" .
— Tentamos assumir uma posição de floresta de quase 1km de extensão. Ao lado de dois grupos de assalto, atacamos três posições. Nosso grupo tinha que manter uma trincheira de 150 metros de extensão. Nós fomos, avançamos 50 metros, e não podíamos avançar mais por causa da intensa resistência da infantaria inimiga — disse à CNN o comandante de companhia Oleh Sentsov, que participou de outros combates importantes, como os de Bakhmut e Zaporíjia.
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Depois de uma fase de avanços e contraofensivas de lado a lado, em 2022, mapas de terreno, como os elaborados pelo Instituto do Estudo da Guerra, apontam para conquistas escassas, e a um custo poucas vezes visto em conflitos modernos. Nos seis meses de luta pelo controle de Bakhmut, estimativas apontam que até 100 mil combatentes podem ter morrido, um combate que já é considerado um dos mais sangrentos do Século XXI.
E como apontou o comandante Sentsov, quebrar linhas de defesa russas e defender posições requer, além de um esforço humano e técnico extraordinário, muita munição. Hoje, os estoques de projéteis de artilharia não estão baixos só na Ucrânia, mas também nos países da Otan, e o pacote rejeitado na quarta-feira previa US$ 3,6 bilhões (R$ 17,66 bilhões) para incrementar a produção nos EUA.
A chegada do frio, da neve e do gelo deve reduzir ainda mais o ritmo dos combates, e traz a ameaça de uma nova onda de ataques contra instalações estratégicas ao redor da Ucrânia, incluindo unidades de geração de energia e de transporte de gás natural, usado no aquecimento das casas. A tática foi usada no inverno passado, e pode causar danos sérios a um país que não conseguiu reparar todos os estragos causados no começo do ano. O governo dos EUA tem anunciado, de forma pontual, o envio de sistemas de defesa aérea, mas ainda não se sabe até que ponto eles serão eficazes.
— Precisamos nos preparar para o fato de que o inimigo vai aumentar o número de ataques de drones e de mísseis contra nossa infraestrutura — disse o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky no mês passado. — A Rússia está se preparando para a Ucrânia. Aqui, na Ucrânia, toda atenção deve ser direcionada à defesa, na resposta aos terroristas e em tudo que a Ucrânia pode fazer para passar pelo inverno e para melhorar a capacidade de nossos soldados.
Impasse europeu
A indefinição política em torno da ajuda a Kiev não é exclusividade dos americanos. Na União Europeia, o volume das vozes que questionam os bilhões destinados aos ucranianos desde fevereiro do ano passado tem aumentado. Hoje estão sobre a mesa duas linhas de financiamento que somadas chegam a € 70 bilhões (R$ 371,03 bilhões), e que preveem ajuda humanitária, financeira e militar. Pelo tom dos líderes europeus, a chance de fracassarem é alta.
Questões fiscais internas, como na Alemanha, a oposição à entrada ucraniana na União Europeia, como na Hungria, a chegada ao poder de políticos pró-Rússia, como na Eslováquia, ou até a vitória da extrema direita, como na Holanda, são novos fatores em uma equação considerada brutal pelas lideranças em Kiev. No caso dos planos bilionários, que devem ser debatidos na semana que vem, um fracasso pode significar não apenas problemas no campo de batalha, mas também nas contas públicas, uma vez que a verba prevê dinheiro para que o país permaneça solvente até 2027.
— É crucial que o apoio contínuo à Ucrânia permaneça, e que os europeus cumpram seu papel — disse ao Financial Times o premier belga Alexander De Croo. — Há muita neblina que precisa dissipar nas próximas semanas. E hoje há tanta neblina que não consigo ver o que está pela frente.
Apoio norte-coreano
Enquanto os ucranianos tentam garantir meios de sustentar a guerra, os russos parecem ter encontrado uma linha eficaz para suas operações. Há semanas, dados divulgados pela imprensa e pela inteligência de vários países apontam que a Coreia do Norte está fornecendo mísseis, foguetes e outros tipos de munição e armas aos russos.
Em um desses casos, o governo dos EUA declarou que mil contêineres foram carregados em um navio no porto norte-coreano de Najin e seguiram rumo a Dunay, na Rússia, de onde foram transferidos por trem até o Sudoeste russo, próximo às linhas de frente.
— Nós condenamos a Coreia do Norte por fornecer esse equipamento militar aos russos, que será usado para atacar cidades ucranianas e ampliar a guerra ilegítima da Rússia — disse, em outubro, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, John Kirby.
Antigos aliados dos tempos da Guerra Fria, Moscou e Pyongyang expandiram seus laços políticos, econômicos e, especialmente, militares desde o início da guerra na Ucrânia. Em setembro, o presidente russo, Vladimir Putin, e o líder norte-coreano Kim Jong-un se reuniram no Extremo Oriente da Rússia, e especula-se que tenham firmado uma série de acordos para o fornecimento de insumos militares e para a troca de conhecimento no setor aeroespacial. Na ocasião, Kim disse a Putin que ele chegaria a "uma grande vitória na luta sagrada pela punição de um grande mal que reivindica hegemonia e alimenta uma ilusão expansionista", se referindo ao conflito em solo ucraniano.